quinta-feira, março 19, 2015

AS QUATORZE REGRAS PARA SOFRER À MANEIRA DE JESUS CRISTO


Não é, porém, suficiente sofrer: o demônio e o mundo tem, seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz nas pegadas de Jesus Cristo: - sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira que Ele a carregou. E eis, para isto, as regras que deveis seguir:
Não procurar cruzes propositadamente ou pela própria culpa.
1º: Não procureis cruzes propositadamente ou por vossa culpa; não se deve fazer o mal para que dele resulte um bem (90); não se deve, sem inspiração especial, fazer as coisas de maneira má, para atrair sobre si mesmo o desprezo dos homens. É antes preciso imitar Jesus Cristo, de quem se disse fez bem todas as coisas (91), não por amor próprio ou por vaidade, mas para agradar a Deus e conquistar a alma do próximo. E se executardes os vossos trabalhos o melhor que puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem desprezos, que a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos consultar.
Consultar o bem do próximo.
2º: Se praticais algum ato indiferente, mas do qual o próximo se escandaliza, ainda que fora de propósito, abstende-vos dele, por caridade, para que cesse o escândalo dos pequenos; o ato heróico de caridade que praticardes nessa ocasião vale infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou pretendíeis fazer.
Se, entretanto, o bem que fazeis é necessário ou útil ao próximo, e escandalizar, sem razão, algum fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa prudente, para saber se o que fazeis é necessário e muito útil ao bem do próximo; e, se ela assim o julgar, continuai e deixai falar, contanto que vos deixem agir, e respondei, em tais ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a alguns de seus discípulos que vieram dizer-lhe que os Fariseus se haviam escandalizado com as suas palavras e ações: “Deixai-os falar. São cegos”. (92).
Admirar, sem pretender atingí-la, a sublime virtude dos santos.
3º: Apesar de alguns santos e pessoas importantes terem pedido, procurado e, por meio de ações ridículas, atraído sobre si mesmos, cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e admiremos apenas a ação do Espírito Santo sobre suas almas e humilhemo-nos diante de tão sublime virtude, sem ousar voar tão alto, um vez que, comparados a essas rápidas águias e rugidores leões, não passamos de criaturas sem coragem e sem força de vontade. (93)
Pedir a Deus a sabedoria da Cruz.
4º: Podeis, entretanto, e mesmo o deveis, pedir a sabedoria da cruz, que é uma ciência saborosa e experimental da verdade, que nos faz ver, à luz da fé, os mais ocultos mistérios, entre os quais o da cruz, e isto só se obtem mediante grandes trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se precisardes do espírito principal (94), que nos faz levar corajosamente as mais pesadas cruzes; do espírito bom (95) e manso, que nos faz saborear, na parte superior da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto (96), que procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da amizade de Deus (97), pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem hesitar (98), sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível desejar, procurar e saborear a cruz.
Humilhar-se das próprias faltas, sem se perturbar.
5º: Quando, por ignorância ou mesmo por vossa culpa, cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma cruz, humilhai-vos imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de Deus (99), sem vos perturbar voluntariamente, dizendo: “Eis, Senhor, uma peça que me pregou meu ofício”! E se houver pecado na falta que cometestes, aceitai a humilhação de vosso orgulho. Algumas vezes, e até muitas veses, Deus permite que seus maiores servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais humilhantes, a fim de humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos homens, a fim de tirar-lhes a vista e o pensamento orgulhoso das graças que lhes dá e do bem que fazem, a fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo, nenhuma carne se glorifique diante de Deus (100).
Deus nos humilha para purificar-nos
6º: Ficai bem persuadidos de que tudo o que existe em nós está inteiramente corrompido (101) pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais; e não apenas os sentidos do corpo, mas todas as potências da alma; e que, logo que o nosso espírito corrompido olha, refletida e complacentemente, algum dom de Deus em nós, esse dom, ação ou graça fica todo poluído e corrompido e Deus dele desvia os seus olhos divinos. Se os olhares e os pensamentos do espírito do homem estragam assim as melhores ações e os mais divinos dons, que diremos dos atos da própria vontade, que são ainda mais corrompidos que os do espírito? (102)
Não é de espantar, depois disto, que Deus sinta prazer em esconder os seus no segredo de sua face (103), para que não sejam manchados pelos olhares dos homens e pelos seus próprios conhecimentos. E, para escondê-los assim, o que não faz e não permite este Deus ciumento?! Quantas humilhações lhes proporciona!
Em quantas faltas os deixa cair! De que tentações permite sejam atacados, como S. Paulo! (104) Em que incertezas, trevas e perplexidade os deixa! Ah! como Deus é admirável nos seus santos e nos caminho pelos quais os conduz à humildade e à santidade!
Evitar nas cruzes, o perigo do orgulho.
7º: Procurai bem, portanto, evitar crer, como os devotos orgulhosos e cheios de si, que vossas cruzes são grandes, que são provas de vossa fidelidade e testemunhas de um singular amor de Deus para convosco. Esta armadilha do orgulho espiritual é muito sutil e delicada, mas cheia de veneno. Deveis crer: 1) que vosso orgulho e moleza vos levam a considerar palhas como se fossem traves; picadas como se fossem chagas, um rato como se fosse um elefante; e uma palavrinha no ar, - um nada, na verdade, - como se fosse uma injúria atroz e um cruel abandono; 2) que as cruzes que Deus vos envia são antes castigos amorosos de vossos pecados, - e de fato o são, - que sinais de especial benevolência; 3) que, seja qual for a cruz que Ele vos enviar, ainda assim vos poupa infinitamente, em virtude do número e da enormidade dos vossos crimes, que só deveis considerar à luz da santidade de Deus, que nada de impuro tolera e que atacastes; à luz de um Deus moribundo e aniquilado de dor, por causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim, que merecestes mil vezes e talvez cem mil; 4) que na paciência com que sofreis há muito mais de humano e natural do que o julgais: provam-no as pequenas mitigações; as procuras secretas de consolação; as aberturas de coração, - tão naturais, - a vossos amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas e prontas; as queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão caridosamente expressas, contra os que vos fizeram algum mal; as referências e complacências delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois algo de grande (105), etc. Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as voltas e reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.
Tirar maior proveito dos pequenos sofrimentos que dos grandes.
8º: Tirai proveito dos pequenos sofrimentos e mesmo mais que dos grandes. Deus não olha tanto o sofrimento quanto a maneira por que se sofre. Sofrer muito e mal é sofrer como condenado; sofrer muito e corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como mártir do demônio; sofrer pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como santo.
Se é verdade que se pode escolher as cruzes, isto é mais certo quanto às cruzes pequenas e escondidas quando nos vêm paralelamente às grandes e visíveis (106). O orgulho da natureza pode pedir, procurar e mesmo escolher e abraçar as cruzes grandes e visíveis; mas escolher e levar bem alegremente as cruzes pequenas e ocultas só pode ser o efeito de uma grande graça e de uma grande fidelidade a Deus. Fazei, pois, como o comerciante com o seu negócio: tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se a mínima parcela da verdadeira Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de alfinete, a indelicadeza de um vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um níquel, uma perturbaçãozinha da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha num dos membros, etc. Tirai proveito de tudo, como o merceeiro em sua mercearia, e, assim como ele enriquece em dinheiro, juntando moeda por moeda em seu cofre, breve estareis ricos em Deus. Ao menor contratempo que sobrevier, dizei: “Deus seja bendito! - (107) Meu Deus, eu Vos agradeço”, depois escondei na memória de Deus, que é vosso cofre, a cruz que acabais de ganhar, e só vos lembreis dela para dizer: Obrigado! ou Misericórdia!
Amar a cruz, não com amor sensível, mas racional e sobrenatural.
9º: Quando vos dizemos para amar a cruz, não falamos em amor sensível, que é impossível à natureza. Distingui bem, portanto, estes três amores: o amor sensível, o amor racional, o amor fiel e supremo; ou, em outras palavras: o amor da parte inferior, que é a carne; o amor da parte superior, que é a razão; e o amor da parte suprema, ou cimo da alma, que é a inteligência esclarecida pela fé.
Deus não vos pede que ameis a cruz com a vontade da carne. Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa, tudo o que dela se origina é corrompido e ela não pode, por si mesma, estar sujeita à vontade de Deus e à sua lei crucificadora. Eis por que, ao falar dela no Horto da Oliveiras, Nosso Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” (108) Se a parte inferior do homem em Jesus Cristo, ainda que santa, não pôde amar a cruz sem desfalecimento, com mais forte razão a nossa, que é toda corrompida, há de a repelir. Podemos, é verdade, experimentar, por vezes, até mesmo alegria sensível pelo que sofremos, como aconteceu a vários santos; mas essa alegria não vem da carne, ainda que nela esteja; vem apenas da parte superior, que se acha tão cheia da divina alegria do Espírito Santo, que a faz estender-se até à parte inferior, de tal sorte que em tal ocasião até mesmo a pessoa mais crucificada pode dizer: Meu coração e minha carne estremeceram de alegria no Deus vivo! (109)
Há outra espécie de amor, que denomino racional, e que se acha na parte superior, que é a razão. Este amor é todo espiritual e, como nasce do conhecimento da felicidade de sofrer por Deus, é perceptível e mesmo percebido pela alma, rejubilando-a interiormente e fortificando-a. Este amor racional e percebido, porém, -apesar de bom, e de muito bom, - nem sempre é necessário para que se sofra alegre e divinamente.
É porque há outro amor, do cimo ou ápice da alma, dizem os mestres da vida espiritual, - ou da inteligência, afirmam os filósofos, - pelo qual, sem experimentar qualquer alegria dos sentidos, sem perceber nenhum prazer racional na alma, é possível amar e saborear, pela visão da fé pura, a cruz que carregamos, muito embora tudo esteja em guerra e estado de alarme na parte inferior, que geme, se queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que se possa dizer, como Jesus Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” ou, com a Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a Vossa palavra!” É com um desses dois amores da parte seperior que devemos amar e aceitar a cruz.
Sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha.
10º: Decidi-vos, queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda humilhação, toda contradição, toda calúnia, toda aridez, todo abandono, toda pena interior ou exterior, dizendo sempre: Meu coração está preparado, meu Deus, meu coração está preparado (110). Preparai-vos, pois, para ser abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo próprio Deus; para ser perseguidos, invejados, traídos, cluniados, desacreditados e abandonados por todos; para sofrer fome, sêde, mendicidade, nudez, exílio, prisão, tortura e todos os suplícios, ainda que não os tenhais merecido pelos crimes que vos impuserem (111). Imaginai enfim que, depois de ter perdido vossos bens e vossa honra, de haver sido lançados para fora de vossa casa, como Jó e Santa Isabel, rainha da Hungria, vos joguem na lama, como àquela santa, e vos arrastem por sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e coberto de úlceras, sem vos darem ataduras para vossas chagas ou, para comerdes, um pedaço de pão que não recusariam a um cavalo ou a um cão; e que, além desses males extremos, Deus vos deixe à mercê de todas as tentações dos demônios, sem derramar sobre vossa alma a mínima consolação sensível.
Crêde firmemente que esse é o ponto supremo da glória divina e a felicidade perfeita de um verdadeiro e perfeito Amigo da Cruz (112).
Os quatro estimulantes do bom sofrimento.
11º: Para ajudar-vos a sofrer bem, tomai o santo hábito de olhar quatro coisas:
1º) O olhar de Deus
Primeiramente o olhar de Deus, que, como um grande rei, do alto de uma torre, olha complacentemente e louvando-lhe a coragem, o seu soldado que peleja.
Que olhará Deus na terra? Os reis e imperadores em seus tronos? Muitas vezes Ele os contempla com desprezo. As grandes vitórias dos exércitos do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra: as coisas que são grandes aos olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos homens é abominação diante de Deus (113) Que olhará Ele então com prazer e complacência e de que pedirá notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um homem que, por Deus, se bate com a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um homem que carrega alegremente a sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha que todo o céu contempla com admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste meu servo Jó”(114), que sofre por mim?
2º) A mão de Deus
Em segundo lugar, considerai a mão deste poderoso Senhor, que permite todo o mal que da natureza nos advém, desde o maior até o menor; a mão que colocou um exército de cem mil homens no campo de batalha (115) e faz cair as folhas das árvores e os cabelos de vossa cabeça (116); a mão que, havendo rudemente atingido Jó, vos toca docemente pelo pouco sofrimento que vos envia. Com essa mão Ele formou o dia e a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal; permitiu os pecados que se cometem e que vos melindram; não lhes fez a malícia, porém lhes permitiu a ação.
Assim, quando virdes um Sémei injuriar-vos e apedrejar-vos, como ao rei Davi, (117) dizei a vós mesmos: “Não nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que mereci toda sorte de utrajes e é justo que Deus me castigue. Parai, braços meus: Parai, língua minha. Não ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher me injuriam por palavras ou por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de sua misericórdia, para exercer vingança amistosa. Não irritemos sua justiça usurpando os direitos de sua vingança; não desprezemos a sua misericórdia resistindo às suas amorosas chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à pura justiça da eternidade.”
Olhai uma das mãos de Deus, que, onipotente e infinitamente prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos atinge; com uma das mãos Ele mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e exalta, e, com seus dois braços, doce e fortemente, alcança, de um polo ao outro, a vossa vida (118); docemente, não permitindo que sejais tentados e provocados acima de vossas forças: - fortemente, secundando-vos com graça poderosa e correspondente à violência e duração da tentação e da aflição; fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele próprio, segundo o diz pelo espírito de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda do precipício perto do qual vos encontrais, vosso companheiro no caminho onde vos perdeis, vossa sombra no calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva que vos molha e no frio que vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos aniquila, vosso socorro na adversidade que vos visita, vosso bastão nos caminhos escorregadios e vosso porto no meio das tempestades que vos ameaçam de ruína e naufrágio”(119).
3º) As chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado
Em terceiro lugar, olhai as chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado. Ele mesmo vô-lo diz: “Ó vós que passais pelo caminho espinhoso e crucificado por que passei, olhai e vêde: olhai com os próprios olhos do vosso corpo e vêde, com os olhos de vossa contemplação, se vossa pobreza, vossa nudez, vosso desprezo, vossas dores, vossos abandonos são semelhantes aos meus; olhai-me, a mim que sou inocente, e queixai-vos, vós que sois culpados!” (120).
O Espírito Santo nos ordena, pela boca dos Apóstolos, esta mesma contemplação de Jesus Crucificado (121); ordena que nos armemos com este pensamento(122) mais penetrante e terrível para todos os nossos inimigos que todas as outras armas. Quando fordes atacados pela pobreza, pela abjeção, pela dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um escudo, uma couraça, um capacete e uma espada de dois gumes (123), a saber: o pensamento de Jesus Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória sobre qualquer inimigo.
4º) Ao alto, o céu; em baixo o inferno.
Em quarto lugar olhai, ao alto, a bela coroa que vos espera no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi esta recompensa que sustentou os patriarcas e os profetas em sua fé e nas perseguições; que animou os Apóstolos e os Mártires em seus trabalhos e tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas, com Moisés - sofrer aflições com o povo de Deus, para ser feliz com Ele eternamente, que gozar de um prazer criminoso por um só momento (124). Sofremos grandes perseguições por causa da recompensa (125), diziam os profetas com Davi.
Somos como vítimas destinadas à morte, como espetáculo para o mundo, os anjos e os homens pelos nossos sofrimentos, como a escória e o anátema do mundo (126), diziam os Apóstolos e os Mártires com São Paulo, por causa do peso imenso da Glória eterna que este momento de breve sofrimento produz em nós (127).
Olhemos sobre nossas cabeças os anjos que nos dizem, em alta vos: “Tende cuidado para não perderdes a coroa marcada pela cruz que vos é dada, se a levardes bem. Se não a carregardes bem, outro o fará e vos arrebatará vossa coroa (128). Combatei fortemente, sofrendo com paciência, dizem-nos todos os santos, e entrareis no reino eterno (129)”. Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos diz: “Só darei minha recompensa àquele que sofrer e vencer pela paciência (130)”.
Olhamos embaixo o lugar que merecemos e que nos espera no inferno com o mau ladrão e os réprobos, se, como eles, sofremos com murmurações, despeito e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai, talhai e retalhai neste mundo para castigar meus pecados, contanto que os perdoeis na eternidade”!
Nunca se queixar da criaturas.
12º: Nunca vos queixeis voluntariamente e entre murmurações, das criaturas de que Deus se serve para vos aflingir. Distingui, para tanto, três espécies de queixas nos sofrimentos.
- A primeira é involuntária e natural: é a do corpo que geme, suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando a alma, como já disse, está resignada com a vontade de Deus, em sua parte superior, não há nenhum pecado.
- A segunda é razoável; é quando alguém se queixa e descobre seu mal aos que podem e devem tratá-lo, como um superior ou o médico. Esta queixa pode ser imperfeita, quando for muito insistente; mas não é pecado.
- A terceira é criminosa: é quando alguém se queixa do próximo para se isentar do mal que ele nos faz sofrer, ou para se vingar; ou quando alguém se queixa da dor que sofre, consetindo nessa queixa e juntado a ela a impaciência e a murmuração.
Receber sempre a cruz com reconhecimento.
13º: Nunca recebais nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e com reconhecimento; e quando Deus, todo bondade, vos houver favorecido com alguma cruz um pouco considerável, agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o agradecer por outros, a exemplo daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos os seus bens em virtude de um processo injusto que lhe moveram, fez celebrar imediatamente uma Missa, com o dinheiro que lhe restava, a fim de agradecer a Deus a ventura que lhe era concedida (131).
Carregar suas cruzes voluntárias.
14º: Se quereis tornar-vos dignos de receber as cruzes que vos hão de vir sem vossa participação e que são as melhores, carregai outras voluntárias, seguindo os conselhos de um bom diretor.
Por exemplo: Tendes em casa algum móvel inútil pelo qual tendes afeição? Dai-o aos pobres, dizendo: quererias o supérfluo quando Jesus é tão pobre?
Tendes horror a algum alimento? A algum ato de virtude? A algum mau odor? Provai-o, praticai-o, aspirai-o. Vencei-vos.
Amais alguém ou algum objeto um pouco terna e insistentemente demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos do que vos lisonjeia.
Tendes uma natureza muito inclinada a ver? A agir? A aparecer? A ir a algum lugar? Parai, calai, escondei-vos, desviai os olhos.
Odiais naturalmente algum objeto? Alguma pessoa? Procurai-a frequentemente. Dominai-vos.
Se sois verdadeiramente Amigos da Cruz, o amor, que é sempre industrioso, vos fará assim encotrar mil pequenas cruzes, com que vos enriqueceis insensívelmente, sem temor da vaidade, que se mistura tão frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes muito visíveis; e porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos estabelecerá em muito (132), como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos enviará, em muita glória que vos preparará (133) ...
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Extraído de "Carta Circular aos Amigos da Cruz" - São Luis Maria G. de Montfort.
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Notas:
(90) Axioma bem conhecido dos antigos, aos quais se refere S. Paulo (Rom., 3, 8).
(91) Marc., 7, 37.
(92) Mat., 15, 14.
(93) (No original: “... des poules mouilées et des chiens morts”).
(94) Sl., 50, 14.
(95) Lc., 11, 13.
(96) Sl., 50, 12.
(97) Sab., 7, 14.
(98) Toda esta alínea é um comentário sobre Tg., 5-6.
(99) I Pd., 5, 6.
(100) I cor., 1, 29.
(101) Num trecho paralelo do “Tratado da verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, Montfort atenuou esta declaração, acrescentando posteriormente esta útil correção: “O pecado de nosso primeiro pai nos deixou a todos quase inteiramente...corrompidos.”
(102) O santo autor desmascara aqui o amor-próprio “que se insinua insensívelmente nas melhores ações” (V. D., nº 146).
(103) Sl., 30, 21.
(104) II Cor., 12, 7.
(105) Cf. At., 8,9.
(106) Isto é: aquelas, dentre as cruzes, que são pequenas e obscuras, se comparadas com as grandes e muito visíveis.
(107) Montfort compôs sobre este tema um belo cântico de vinte e duas estrofes, intitulado “O pobre de espírito”. Os 2º e 4º versos de cada estrofe são, invariavelmente: “Deus seja bendito! Deus seja bendito!” (Cânticos: 19º Tradicional).
(108) Lc., 22, 42.
(109) Sl., 83, 3.
(110) Sl., 107, 2;l Sl., 56, 8.
(111) Isto é, que vos “imputarem”.
(112) Nestas linhas sublimes, em que transparece a santa loucura da Cruz, não julgaríamos estar a ouvir São Francisco de Assis dizendo ao Irmão Leão, diante do quadro dos piores desprezados: “Aí está a perfeita alegria”?
(113) Lc., 16, 15.
(114) Jó., 2, 3.
(115) Montfort, sem dúvida, faz aqui alusão ao extermínio do exército de Senaquerib por um Anjo do Eterno, que dizimou, numa noite, cento e oitenta e cinco mil homens. (IV Reis, 19, 35).
(116) Lc., 21, 18.
(117) II Reis, 16, 5-11.
(118) Sab., 8, 1.
(119) Cf. Itinerário dos clérigos.
(120) Parafr. de Jeremias: Lament., I, 12.
(121) Gal., 3, 1.
(122) I Ped., 4, 1.
(123) Ver. Efes., 6, 12-18.
(124) Heb., 11, 25-26.
(125) Ps., 68, 8; 118, 112.
(126) I Cor., 4, 9 e 13.
(127) Cf. II Cor., 4, 17.
(128) Alusão à defecção do 40º mártir de Sebaste.
(129) Escritura e Liturgia, passim.
(130) Cf. Apoc., 2, 6, 11, 17, 26; 3, 5, 12, 21; 21, 7.
(131) Cf. Boudon: “Les sainctes voyes de la croix”, liv IV, cap. VI.
(132) Mat., 21, 21 e 23.
(133) Será este o fim da “Carta”? Decerto poderia esta terminar com este pensamento. O Padre Quérard, historiador de Montfort (1887), entretanto, lamenta que a conclusão dela se haja perdido. Na ausência do manuscrito, é difícil resolver a questão.

QUE É A EXCOMUNHÃO?





DIREITO CANÓNICO
SEBASTIÃO (Belo Horizonte): «Diante das recentes notícias de excomunhão proferidas sobre este ou aquele homem público, gostaria de saber em que consiste essa pena e quais os seus efeitos».

1. A excomunhão é, sumariamente, a pena pela qual um cristão é excluído da comunhão (ou da união de vida) dos demais fiéis (ou da Igreja); cf. Código de Direito Canônico, cân. 2257 § 1.

A palavra «excomunhão» tinha, nos primeiros séculos do Cristianismo, sentido assaz vago, podendo designar qualquer modalidade de pena eclesiástica. Foi no séc. XIII que o Papa Inocêncio III lhe deu a acepção que ela hoje possui no Direito da Igreja.

Dado o significado geral do termo «excomunhão», compreende-se que tivesse outrora vários sinônimos, como «anátema, maldição, execração».

O vocábulo grego «anathema» designava originariamente uma oferenda feita à Divindade, oferenda suspensa ou exposta no templo e sequestrada ao uso profano. Já que muitas vezes tais oferendas eram os despojos de inimigos vencidos na guerra, o anátema ficou sendo um objeto execrado ou tido como imundo, intangível aos homens puros. Na linguagem cristã, o anatematismo ou simplesmente o anátema tomou aos poucos o sentido que hoje lhe compete: é uma excomunhão, como declara o cân. 2257 § 2. ... mas excomunhão geralmente infligida em circunstâncias mais solenes, ou seja, em meio a ritos destinados a incutir mais sensivelmente o horror da pena.

Com efeito, o «Pontifical Romano», no tocante ao anátema, prescreve que o bispo, revestido de capa roxa e mitra simples, se sente em uma poltrona, tendo em torno de si doze presbíteros trajados de sobrepeliz e portadores de velas acesas. O Prelado pronuncia então palavras extremamente severas que excluem o réu da comunhão dos fiéis; a seguir, os assistentes atiram ao chão as suas velas. O ato é levado por carta ao conhecimento dos demais sacerdotes diocesanos e dos bispos vizinhos. - - Tal cerimônia caiu em desuso nos nossos dias.

Quando, pois, uma definição do Sumo Pontífice ou de um Concilio profere anátema (o que ainda hoje acontece), entenda-se “excomunhão” no sentido que será descrito no presente artigo. A expressão “anathema perpetuum” (ou “an. maranatha”, até que venha o Senhor...), outrora ocorrente em documentos eclesiásticos, era, por vezes nos primeiros séculos, interpretada como condenação ao inferno, onde o anatematizado seria companheiro de Judas, o traidor. Contudo o Papa Gelásio I, em 495 aproximadamente, declarou que o aposto «perpétuo» “maranatha” não excluía a possibilidade de reconciliação do réu com Deus e com a Igreja, mas apenas realçava a obstinação ou dureza de coração do delinquente, que punha em perigo a sua salvação eterna.

2. O poder de excomungar membros nocivos ou indignos sempre foi reconhecido às sociedades devidamente organizadas; é condirão essencial para salvaguardar o bem comum. Os judeus o praticavam (cf. Jo 9,22). No Novo Testamento Jesus o insinuou em Mt 18,17, referindo-se a irmãos obstinados no mal; São Paulo fez uso desse direito, considerando a excomunhão como remédio salutar para um irmão que levava vida escandalosa (cf. 1Cor 5,3-5).

3. Até o séc. XV era vedado aos fiéis ter relações, mesmo no setor profano, com os excomungados; quem desrespeitasse esta proibição, incorria por sua vez em excomunhão. Tal medida, porém, provocava, na vida cotidiana, não poucos conflitos de consciência. Em vista disto, o Papa Martinho V, no concilio de Constança (1418), resolveu distinguir entre excomungados «tolerados» (tolerati) e excomungados «a ser evitados» (vitandi), distinção esta que foi explicitada pelo Direito atualmente vigente (cf. pág. 241 deste fascículo).

A excomunhão era frequentemente aplicada na Idade Média. No séc. XVI, porém, o Concílio de Trento (sess. XXV) admoestou os bispos e juízes eclesiásticos a usar de moderação e cautela nesse setor, pois, sem dúvida, a excomunhão vem a ser a mais grave de todas as penas eclesiásticas. O atual Código de Direito Canônico em 1918 renovou esta exortação e, desenvolvendo tendências já manifestadas por Pio IX no século passado, diminuiu notavelmente o número de casos que, por efeito da própria lei, são punidos de excomunhão (ver a lista dos mesmos sob o titulo número 4 deste artigo).

Consideremos agora de mais perto o que vem a ser exatamente a excomunhão, quais as suas modalidades, os seus efeitos e os casos em que a lei eclesiástica a inflige.

1. Que é excomunhão?

A excomunhão vem a ser, junto com a suspensão e o interdito, uma das penalidades eclesiásticas ditas «censuras». Por isto, faz-se mister, antes dò mais, aqui dizer o que o Direito Canônico entende por «censura».

O cân. 2241 define a censura como penalidade pela qual um cristão, tendo-se tornado delinquente obstinado, é destituído de certos bens espirituais ou de bens temporais anexos aos espirituais, até que se emende e seja devidamente absolvido.
Para esclarecer esta definição, pode-se imediatamente fazer a seguinte observação:

Os bens espirituais de que possam gozar os fiéis na Igreja, classificam-se em três categorias:
a) alguns têm. por assim dizer, sede nas almas, e permanecem invisíveis: seriam a graça santificante, os caracteres sacramentais, as virtudes infusas;
b) outros, embora não sejam hábitos residentes na alma, pertencem aos fiéis individualmente ou à personalidade própria de cada um; seriam as boas obras, as orações, os méritos...;
c) por fim, há bens espirituais que pertencem à Igreja como tal ou como Corpo de Cristo e dos quais cada fiel participa na medida em que está incorporado ou vinculado à Igreja; tais bens são os sacramentos. os sacramentais, as orações públicas feitas em nome da Igreja, a jurisdição...

Ora é sòmente esta terceira categoria de bens que a Igreja pode subtrair, por meio de censuras, aos fiéis delinquentes. A Sta. Igreja só interfere nas riquezas espirituais que Ela mesma, por seu ministério sagrado, fornece aos cristãos no foro social, comunitário (dito também «foro externo»). Ela nada pode tirar dos bens espirituais meramente interiores de cada alma (bens «de foro interno»), como são os méritos, a fé. a caridade...

Em outros ternos : mediante as suas censuras, a Sta. Igreja rompe apenas vínculos de foro externo. Essa ruptura, porém, vai exercer seus efeitos também no foro interno, pois. em consciência e diante de Deus, o cristão censurado está obrigado a respeitar a sua sentença (não lhe será licito, portanto, receber furtivamente os sacramentos, caso haja sido declarado Inepto para tal).

Levando-se em conta os bens espirituais de foro externo dos quais um cristão possa ser privado, distinguem se três tipos de censura: a excomunhão, a suspensão e o interdito.

A excomunhão é a mais grave das censuras, pois priva de Iodos os ' " bens espirituais de foro externo e exclui da sociedade dos fiéis.

O Interdito priva apenas do uso de certas instituições ou coisas sagradas. como. por exemplo, sacramentos, atos de culto solene, sepultura eclesiástica.

A suspensão só recai sobre clérigos, despojando-os do uso das faculdades eclesiásticas (uso de ordens ou uso de jurisdição); o clérigo suspenso não pode mais administrar os sacramentos, mas pode recebê-los caso tenha as devidas disposições.

Feitas estas observações sobre as censuras em geral, detenhamo-nos agora sobre a excomunhão como tal.
De quanto acaba de sei- dito, depreende-se que

A) Excomunhão não é condenação ao inferno.

A Igreja não tem poderes judiciais para definir a .sorte póstuma dos homens. Além disto, sabe-se que, enquanto alguém é peregrino sobre a terra, sempre lhe resta a possibilidade de lazer penitencia mesmo das mais graves culpas que haja cometido; a graça de Deus com ida o pecador até o fim da vida; este a pode aceitar de maneira visível e pública ou de modo oculto na hora da morte. Por conseguinte, a ninguém, nem mesmo ao Sumo Pontífice, será lícito dizer que tal delinquente está definitivamente condenado ao inferno.

B) Excomunhão também não é declaração de que alguém esteja em pecado mortal.

A excomunhão, como se disse atrás, não visa diretamente o foro interno ou as realidades íntimas da consciência. Ela apenas leva em conta o comportamento externo e visível do cristão. Tal conduta pode ser a de um verdadeiro delinquente, ao qual a justiça e o bem comum pedem a aplicação de uma sanção; mesmo nesse caso, porém, o aparente réu pode não ter culpa grave, ou simplesmente pode não ter culpa, em consciência ou perante Deus. — A excomunhão, portanto, supre o estado de pecado mortal na pessoa excomungada, mas de modo nenhum ela acarreta ou constitui tal estado. A rigor, por conseguinte, pode haver uma pessoa excomungada que, não obstante, se ache em estado de graça (é de crer, porém, que tal caso seja raro).

C) Positivamente, a excomunhão é, como dizíamos, a privarão máxima dos bens espirituais de foro externo que a Igreja possa infligir, com intuito estritamente medicinal, ou seja, em vista de correção do respectivo delinquente.
À guisa de explicarão, dir-se-á

1) Toda excomunhão supõe um delito (isto é, a violação de uma lei) externo ou visível (a Igreja não pune atos meramente internos) e grave. A gravidade da falta se mede não somente pela importância da lei violada, mas também pelo dano causado ao próximo e pela responsabilidade do delinquente.

Caso, por conseguinte, alguém tenha a intenção de cometer uma falta grave passível de excomunhão, mas só execute um ato que no foro externo tem pouca importância, não incorre em excomunhão, embora peque gravemente. É o que se daria, por exemplo, se alguém espancasse levemente um clérigo com premeditada intenção de o ferir mortalmente; tal pessoa, no seu foro interno, cometeria um pecado grave (por causa da sua intenção), mas não incorreria na censura anexa aos delitos vultuosos e veementes desse gênero.

2) A excomunhão supõe claro conhecimento de causa da parte do delinquente. O que quer dizer que só incorre em excomunhão a pessoa que saiba que tal ou tal delito (que ela está para cometer) é passível de excomunhão; quem não tenha conhecimento da censura, não é atingido por ela.

Esta afirmação se deriva do fato de que a excomunhão é pena estritamente medicinal, não meramente vingativa. Ora as penas medicinais, na Igreja, visam todas sanear a contumácia ou obstinação do delinquente. Pois bem. ensinam os canonistas, para que alguém possa ser dito obstinado ou contumaz, não "basta que saiba ser tal ou tal ato proibido pela Lei de Deus (ou pecado); faz-se mister outrossim, saiba que esse ato também é proibido pela lei da Igreja, e proibido de modo a acarretar tal ou tal pena para o delinquente. Somente se souber disto é que o réu poderá ser tido como obstinado e. consequentemente, passível de excomunhão.

3) Já que é pena estritamente medicinal, a excomunhão não pode ser infligida por prazo fixo, de modo a dever ser suspensa em data previamente estipulada. Ao contrário, a excomunhão durará tanto tempo quanto perdurarem as disposições «doentias» do delinquente; logo que este dê sinais evidentes de emenda de vida e peça absolvição, o caso é reconsiderado pela autoridade da Igreja, que em geral restitui a sua comunhão.

4) Ainda pelo mesmo motivo vê-se que a excomunhão só pode propriamente recair sobre pessoas físicas (pois sòmente estas são capazes de emenda de vida); caso seja proferida sobre um corpo moral ou lima sociedade, ela atinge os membros dessa sociedade que sejam pessoalmente culpados ou cúmplices do delito (cf. cân. 2255 § 2).
Está claro que a sentença de excomunhão só se pode aplicar aos filhos da Igreja, pois quem não Lhe pertence não pode ser excluído do seu grêmio. Donde se deduz, por exemplo, que um estadista não batizado não pode ser excomungado, caso se torne perseguidor da Igreja; em circunstâncias análogas, é excomungado o estadista católico.
Passemos a outro aspecto da questão:

2. Modalidades de excomunhão

Distinguem-se modalidades de excomunhão de acordo com o ponto de vista sob o qual essa pena é considerada. Contemplaremos aqui apenas dois aspectos principais.

Do ponto de vista da autoridade que a profere, faz-se distinção entre
- excomunhão «ferendae sententiae», a qual depende de sentença explícita do juiz eclesiástico (por isto também é dita «ex- communicatio hominis») e supõe admoestações canônicas antecedentes;
- excomunhão «latae sententiae», isto é, decorrente do texto mesmo da lei; segue-se imediatamente ao delito, não sendo necessárias previas admoestações nem processo judiciário (por isto, também é dita «excommunicatio iuris»).

As excomunhões «latae sententiae» se subdistinguem em cinco modalidades de acordo com a autoridade que esteja habilitada a absolvê-las. Existem, sim, excomunhões reservadas à Santa Sé dc modo especialíssimo, do modo especial, de modo simples; excomunhões reservadas ao Bispo ou Ordinário diocesano; excomunhões não reservadas.

Exemplos se encontrarão sob o titulo n. 4 desta resposta.

Do ponto de vista da gravidade das consequências, distinguem-se
- excomungados tolerados («tolerati»), com os quais é permitido aos fiéis entreter relações civis,
- excomungados a ser evitados («vitandi»), com os quais o intercâmbio, em tese, é ilícito (contudo relações meramente familiares ou civis ficam permitidas aos respectivos pais, consorte, filhos, súditos e a outras pessoas que tenham justo motivo para isso; cf. cân. 2267).

Para que alguém seja excomungado «vitandus» (a ser evitado) , requer-se, conforme o cân. 2258 § 2, o cumprimento simultâneo de três condições:
- o réu deve ser, na sentença de excomunhão, mencionado pelo respectivo nome ou por característica pessoal (profissão, encargo...);
- a sentença de excomunhão deve ser promulgada publicamente, seja pelo periódico oficial da Santa Sé («Acta Apostolicae Sedis»), seja por avisos colocados às portas das igrejas ou proferidos do alto dos púlpitos;
- a sentença deve declarar explicitamente que a pessoa excomungada há de ser evitada. Excetua-se apenas o caso de quem ouse levantar a mão contra o Sumo Pontífice: torna-se excomungado «vitandus», desde que haja cometido o atentado (cf. cân. 2343 § 1).

Ora, já que raramente se preenchem as três condições acima, exíguo tem sido o número de excomungados a ser evitados em nossos tempos. O ex-bispo de Maura, porém, D. Carlos Duarte, incorreu nessa pena extrema.

Podem ser outrossim mencionados:
- os sacerdotes Xavier Dvorak e Luis Svatos, por se haver agregado pertinazmente à Associação cismática «Jednota» na Tcheco-eslováquia (cf. A.A.S. XIV 11922] 593);
- o sacerdote Ernesto Buonaiuti, por disseminar contumazmente a heresia dita «Modernismo» (cí. A.A.S. XVIII [19261 40s);
- o sacerdote José Turmel, autor de obras modernistas publicadas durante quarenta anos sob a cobertura de quatorze pseudônimos sucessivos (cl. A.A.S. XXU 119303 517-520);
o sacerdote Prosper Alfaric, que chegou a negar obstinadamente a existência histórica de Jesus Cristo (cí. A.A.S. XXV [1933] 333).

Importa agora considerar

3. Os efeitos da excomunhão

3.1. A todo e qualquer excomungado é vedado
a) receber os sacramentos;
b) administrar os sacramentos e os sacramentais.
Contudo em caso de necessidade e na falta de outro sacerdote, torna-se licito a qualquer sacerdote excomungado administrar os sacramentos. Fora dos casos de evidente necessidade, um sacerdote excomungado tolerado os poderá administrar licitamente, desde que os fiéis o peçam de boa fé e é-ie esteja em estado de graça (se lhe faltasse o estado de graça, pecaria gravemente e incorreria em irregularidade). O excomungado «vitandus». porém, não poderá licitamente administrar fora dos casos de necessidade; incorreriam em falta grave ele e os fiéis que, cientes da excomunhão do sacerdote, dele recebessem o sacramento; nessas circunstâncias, a confissão seria não sòmente ilícita, mas até inválida, por falta de jurisdição do sacerdote;
c) assistir aos Ofícios Divinos. Por «Ofícios Divinos» entendem-se aqui os atos de culto que só podem ser executados por clérigos (a celebração da S. Missa, o canto das horas canônicas com ministros paramentados, a bênção do SSmo. Sacramento.»).
Ao excomungado, porém, não é proibido ouvir a pregação da Palavra de Deus nem entrar na igreja para rezar fora das horas de Ofício.
O reitor da igreja tem o direito (que não constitui uma obrigação) de pedir ao excomungado tolerado que se retire do recinto durante a realização dos referidos atos de culto. Em nossos dias a proibição de assistir aos Ofícios Divinos tem caído em desuso, desde que se trate de excomungados tolerados que queiram comparecer numa atitude meramente passiva.
Caso. porém, um excomungado «vitandus» penetre na igreja com a intenção de assistir a um ato de culto oficial, o reitor, primeiramente, intimá-lo-á a retirar-se; se nada conseguir, os fiéis abandonarão o templo: quanto ao sacerdote que esteja celebrando a S. Missa e já tenha proferido as palavras da Consagração, prosseguirá no altar até a Comunhão do preciosíssimo Sangue, indo depois terminar o Santo Sacrifício na sacristia;
d) usufruir das indulgências, dos sufrágios o das orações que a S. Igreja costuma fazer oficialmente pelos fiéis. Não é il:cito, porem (ao contrário, ardorosamente se recomenda) que os sacerdotes e os fiéis, a titulo particular, isto é, em seu nome pessoal, orem pelos excomungados; poderão fazê-lo mesmo na igreja e em público. É permitido (e até muito louvável) que os sacerdotes apliquem a S. Missa pelos excomungados, contanto que o façam sem solenidade e aparato a fim de evitar o escândalo ou qualquer aparência de aprovação do mal (vê-se, pois, que. em se tratando de aplicar a S. Missa, a sanção versa apenas sóbre a parte externa do rito sagrado; tal sanção é oportuna para evitar qualquer perigo de equiparação do bem e do mal). K altamente necessária a oração dos sacerdotes e dos leigos em prol dos excomungados, pois, sendo a excomunhão uma pena medicinal, é de desejar que os excomungados consigam a medicina ou o remédio espiritual que a respectiva sanção lhes deve proporcionar; ora a consecução desta graça pode ser eficazmente impetrada pela prece;
e) exercer algum cargo, oficio ou jurisdição dentro da Igreja;
f) usufruir de algum privilégio eclesiástico ou de pensões, benefícios ou dignidade dentro da Igreja;
g) eleger, nomear, apresentar alguém (o que se aplica principalmente nos casos de ser padrinho de batismo, de crisma...);
h) obter sepultura eclesiástica, a menos que na hora da morte o excomungado dê sinais de arrependimento.
Caso o excomungado persista por um ano inteiro no seu êrro, torna-se suspeito de heresia (cf. cân. 2340 § 1) e vem a ser tratado como tal.

3.2. Em particular, os excomungados «vitandi» são destituídos não somente dos emolumentos e benefícios anexos aos seus respectivos cargos e ofícios, mas também dos próprios cargos; perdem o direito a qualquer graça ou favor papal. As Missas que em benefício deles sejam celebradas, terão por fim obter a sua conversão, não podendo por conseguinte visar alguma graça de índole temporal como saúde ou emprego.

Os canonistas ainda enumeram outros efeitos da pena de excomunhão. Contudo, já que versam sobre pormenores e casos especiais, limitamo-nos à lista acima, a fim de considerar imediatamente o aspecto final da questão.

4. Os delitos passíveis de excomunhão

No Código de Direito Canônico são enunciados 37 casos de excomunhão «latae sententiae» (ou a ser contraída pelo fato mesmo de se cometer o delito). Desses casos, 4, para ser absolvidos, ficam reservados à Santa Sé de modo especialíssimo; 11, de modo especial; 11, de modo simples; 6 são reservados ao Bispo ou Prelado diocesano, e 5 não são reservados.
Ei-los todos, sucessivamente formulados:

1) A excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especialíssima recai sobre
- profanação do sacramento da Eucaristia (cân. 2320);
- violência física contra a pessoa do Sumo Pontífice (cân. 2343 $ 1);
- absolvição de cúmplice em pecado de luxúria simples ou qualificado (cân. 2367 § 1);
- violação direta do sigilo sacramental (cân. 2369 $ 1).

2) A excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especial se prende na maioria dos casos a delitos contra a fé:
- apostasia, heresia, cisma (cân. 2314);
- edição, defesa, conservação e leitura de livros que propaguem a apostasia ou o cisma (cân. 2318 $ 1);
- simulação de celebração da S. Missa e de administração do sacramento da Penitência por parte de quem não seja sacerdote (cân. 2322 S 1);
- apelo a um Concilio Ecumênico contra determinação do Sumo Pontífice reinante (cân. 2332);
- recurso aos poderes civis a fim de impedir ou entravar a execução de leis da Santa Sé ou dos seus legados (cân. 2333);
- promulgação de leis ou decretos contrários à liberdade ou aos direitos da Igreja; recurso aos poderes seculares para impedir o exercido da jurisdição eclesiástica (cân. 2334);
- o gesto de convocar perante tribunal civil um Cardeal, um legado da Santa Sé, um dos Oficiais maiores da Cúria Romana ou o respectivo prelado diocesano (do convocante) (cân. 2341);
- ofensa física infligida à pessoa de um Cardeal ou de um legado do Sumo Pontífice (cân. 2313 $ 2);
- usurpação de bens ou de direitos da Igreja Romana (cân. 2345);
- falsificação ou alteração de cartas, decretos ou leis da Santa Sé. ou ainda uso fraudulento e enganador desses documentos (cân. 2360);
- caluniosa denúncia feita aos superiores eclesiásticos contra um sacerdote como se houvesse solicitado no confessionário o seu penitente a pecado de luxúria (cân. 2363».

3) A excomunhão simplesmente reservada à Santa Sé está anexa a
- comércio sacrílego de indulgências (cân. 2327);
- inscrição na maçonaria ou em organizações afins (cân. 2335»;
- o gesto de um sacerdote que, de má fé e sem a devida delegação, ousasse absolver de excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especial ou especialíssima (cân. 233S S 1);
- colaboração consciente e espontânea, em assuntos religiosos e em proporções amplas, de um clérigo com pessoa excomungada a ser evitada (cân. 2338 $2);
- o gesto de denunciar perante tribunal civil
um bispo que não seja o respectivo bispo diocesano de quem
denuncie»
ou um Abade ou Prelado Nullius.
ou um supervisor geral do Instituto de Direito Pontifício (cân. 2341)
- violação de clausura das monjas ou dos Religiosos regulares por parte de pessoas estranhas;
- saída ilegal da clausura por parte das monjas (cân. 2342);
- usurpação ou desvio do bens da Igreja (cân. 2316)
- duelo (cân. 2351 $1);
- tentativa de matrimônio por parte de clérigos de ordens maiores (bispos, presbíteros, diáconos, subdiáconos) ou por parte de religiosos ou monjas que tenham votos solenes (cân. 2388 $ 1);
- simonia com cargos e dignidades eclesiásticas (cãn. 2392);
- sequestração, destruição, ocultamento ou alteração de documentos pertencentes à Cúria diocesana (cân. 2405).

4) A excomunhão reservada ao bispo diocesano atinge
- celebração de casamento misto perante ministro nãocatólico; acordo assinado pelo nubente católico, permitindo o batismo ou a educação da prole respectiva fora da Igreja Católica (cân. 2319);
- fabricação, venda, distribuição e exposição ao público de falsas relíquias (cân. 2326);
- ofensa física à pessoa de um clérigo ou Religioso não enunciado no cân. 2313 § 1-3 (cân. 2343 $4);
- crime de aborto (cân. 2350 $1);
- abandono (ou apostasia) da vida regular por parte de Religioso professo (cân. 2385);
- contrato matrimonial por parte de Religiosos de votos simples (cân. 2388 $ 2);

5) A excomunhão não reservada está anexa a
- edição da Sagrada Escritura ou de comentários da mesma, sem a devida autorização eclesiástica (cân. 2318 S 2);
ordem de dar sepultura eclesiástica a infiéis, apóstatas, heréticos, cismáticos, interditados, contra as disposições do cân. 1240 § l (cân. 2339)"
- ilegítima alienação de bens eclesiásticos, todas as vezes que, para tanto, esteja prescrito o beneplácito apostólico (cân. 2347);
- ato de constranger um varão a abraçar o estado clerical ou de coagir um varão ou uma donzela a entrar na vida religiosa (cân. 2352);
- o «deixar de denunciar» o confessor que no confessionário solicite o seu penitente a pecado de luxúria (cân. 2368 §2).

Além disto, observe-se :
- o cân. 2330 confirma a excomunhão reservada de modo especialíssimo ao Sumo Pontífice (n.b.: não à Santa Sé), proferida peia Constituição Apostólica «Vacante Sede Apostólica» contra as pessoas que ousem ilegitimamente intervir na eleição de um Papa;
- a Sagrada Congregação do Concílio houve por bem, aos 22 de março de 1950. punir com excomunhão, reservada de modo especial à Santa Sé, o delito previsto pelo cân. 2380, isto é, o exercício de comércio por parte de clérigos;
- aos 9 de abril de 1951, o Santo Ofício declarou haver excomunhão, de modo especialíssimo reservada à Santa Sé, para todos os que ousem conferir ou receber a sagração episcopal sem prévia e explicita provisão da Santa Sé (medida esta que tinha em vista principalmente as sagrações episcopais cismáticas realizadas ultimamente nos países da Cortina de Ferro ou da Cortina de Bambu, em que os governos comunistas tendem a criar «Igrejas Católicas Populares» ou «Igrejas Católicas Progressistas»).

Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

Reflexões sobre a intercessão dos santos

Antes de explorar o título da única mediação de Cristo, seria prudente definir os termo. A palavra mediador geralmente possui dois significados. Em um estrito e primário sentido, refere-se à figura que se interpõe entre duas partes opostas para reconciliá-las. Há 4 componentes para esta definição: 1- intervenção pessoal; 2- de um princípio; 3- a intenção de efetivar uma reconciliação; 4- entre duas ou mais partes alienadas.

Em relação à nossa redenção a única pessoa que se adequa à definição estrita é Jesus Cristo. Somente Jesus se interpõe efetivamente entre as duas partes, Deus e todo o gênero humano. Somente Jesus foi capaz de alcançar a reconciliação com Deus. Como escreve São Paulo Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem (1Tm 2,5). Esta é a fé da maioria dos cristãos e o ensino oficial da Igreja Católica.

Há, entretanto, um sentido menor que os cristãos sempre compreenderam sobre a idéia de mediação. É a idéia de uma mediação subordinada na qual participamos da mediação de Jesus Cristo. É uma mediação que é feita através, com e em Cristo. O mediador subordinado nunca está isolado, mas sempre dependente de Jesus. Examinemos as fundamentações bíblicas deste entendimento, com especial referência a 1Tm 2,5.

Devem sempre se aplicar alguns princípios quando se interpreta a Bíblia. Por exemplo, a Escritura tem um único divino autor, mas vários autores humanos diferentes. Por essa razão, cada livro canônico forma apenas uma harmonia, cada parte concordando com a anterior e a sucessora. Assim, por exemplo, um ensinamento em Gênesis não pode ser contraditório a um ensinamento do Evangelho de João, ou vice-versa. Em adição, o corpo completo da verdade revelada em toda a Bíblia freqüentemente lança uma luz no entendimento de um livro ou de um texto específico. Por isso livros adiante nos explicam e aumentam nosso conhecimento sobre o livro de Gênesis, por exemplo. Em segundo lugar, para tentar se entender um texto particular, deve-se acima de tudo considerar o seu contexto.

Voltemos à primeira carta de Paulo a Timótio e ver como estes princípios se aplicam.

Se considerarmos o versículo em questão Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem fora do contexto, facilmente iremos interpretá-la mal.

Será que "um só mediador" não significa apenas um - sem exceção? Por isso pedir a intercessão dos santos pode parecer anti-bíblico se visto por esta perspectiva. Contudo, esta interpretação não é precisa. A passagem não está isolada, mas é um versículo em um livro maior, chamado Epístola. Qual é, então, o correto sentido do que Paulo está falando? Como esta passagem se adequa ao contexto apresentado na Bíblia? Vamos considerar esta questão analisando o contexto imediato deste versículo.

São Paulo está rejeitando a idéia de mediadores subordinados a Cristo? Não, muito pelo contrário! O capítulo 2 se inicia com a seguinte exortação:

Acima de tudo, recomendo que se façam súplicas, pedidos e intercessões, ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, para que possamos viver uma vida calma e tranqüila, com toda a piedade e honestidade "Súplicas, pedidos e intercessões" são atos de mediação. Paulo está explicitamente instruindo Timótio para que os cristão assumam seu papel de mediadores subordinados entre Deus e aqueles que estão listados, todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade. O princípio teológico que Paulo usa para dar apoio à este comando é a passagem já citada no versículo 5 - a mediação única, e primária, de Cristo.

Assunto tão prático é o fato de os cristãos orarem uns pelos outros. Estabelecem grupos de orações exatamente para este propósito. Qual seria, então, a objeção de pedir aos cristão que estão no céu para orarem por nós na terra? Muitas pessoas são beneficiadas pelas orações fervorosas de muitos parentes e amigos. Uma vez no céu devemos supor que estes não mais se importam com nosso bem-estar, ou que Deus se ofenderia se nós pedíssemos que intercedessem por nós? Esta idéia certamente não encontra base em 1Tm 2,5. Indubitavelmente, a rejeição à intercessão dos santos se fundamenta no desejo de enfatizar a sublime e infinita capacidade da única mediação de Cristo. Esta louvável motivação leva, infelizmente, a um conhecimento inadequado da grandeza imensurável do poder mediador de Jesus. Em outras palavras, cai em conflito com importantes ensinos bíblicos.

Um importante tema que cerca a maioria dos livros da Bíblia é a idéia da aliança. A aliança é o pacto da parte de Deus que faz do seu povo a sua família. Certamente, os vários exemplos bíblicos que mostram a imperfeição do homem e sua falha sucessivas vezes de cumprir a aliança em nada diminui o poder de Deus, mesmo que seja sempre Deus quem dê todo o auxílio ao seu povo. A bíblia amplamente mostra que nosso Deus quer incluir os seus fracos e pecadores filhos nos assuntos da família - a salvação das almas. Dessa forma, Paulo, seguindo seu apelo para "súplicas, pedidos e intercessões" está instruindo Timótio que esta mediação é agradável a Deus.

Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,3-4)

No Antigo Testamento somos apresentados ao exemplo de mediação de Abraão ao pelo podo de Sodoma, que Deus aprovou e correspondeu. Em relação à história de José, John Skinner escreve:

A profunda convicção religiosa que reconhece a mão de Deus, não meramente em intervenções miraculosas, mas no trabalho dos fins divinos através da agência humana e pelo que podemos chamar de causas secundárias, é característica da narrativa de José [John Skinner, "Genesis," International Critical Commentary (Edinburgh: T. and T. Clarke, 1910), p. 487, sublinhado acrescentado]

Moisés, Davi, os profetas e os sacerdotes levíticos claramente exerceram seu papel como mediadores. No Novo Testamento Jesus formou os seus apóstolos e os concedeu o papel de mediadores. Ele deu-os instruções para evangelizar e batizar (cf. Mt 28,18-20), perdoar pecados (Jo 20,23) e de celebrar a Eucaristia (1Cor 11,23-25) - todas essas são funções de mediadores. Paulo termina sua carta a Timótio conectando a única mediação de Cristo com o seu próprio apostolado, que também era uma missão de mediação subordinada:

E deste fato - digo a verdade, não minto - fui constituído pregador, apóstolo e doutor dos gentios, na fé e na verdade (1Tm 2,7)

A verdade dos cristãos participando na única mediação de Cristo é abundantemente clara na prática da Igreja primitiva. Isto encontra-se afirmando inclusive por um dos maiores historiadores e patrologistas protestantes, JND Kelly. Ele diz:

Um fenômeno de grande significação no período patrístico foi o surgimento e gradual desenvolvimento da veneração aos santos, mais particularmente à bem-aventurada virgem Maria...Logo após vinha o culto aos mártires, os heróis da fé que os primeiros cristãos afirmavam já estarem na presença de Deus e gloriosos em sua visão. Em primeiro lugar tomou forma de uma preservação das relíquias e da celebração anual de seu nascimento. A partir daí foi um pequeno passo, pois já estavam participando com Cristo da glória celeste, para que se buscassem suas orações, e já no terceiro século se acumulam as evidências da crença no poder da intercessão dos santos [J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, revised edition (San Francisco: Harper, c. 1979), p. 490]

Um exemplo se encontra nos relatos antigos do Martírio de Policarpo, que morreu aos 86 anos:

Quando [Policarpo] finalmente acabara suas orações, na qual relembrou cada um dos que havia encontrado, do pequeno ao maior, do famoso ao desconhecido, e de toda a Igreja Católica em todo o mundo, seu momento de partida havia chegado. Sentaram-no em um jumento e partiram da cidade[William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, 3 volumes (Collegeville: The Liturgical Press, c. 1970), Vol. I, # 79]

Após seu martírio ouvimos falar da reverência que era prestada aos seus restos:

Então, ao menos, conseguimos tomar os seus ossos, mais preciosos que uma jóia e mais puros que o ouro, e os pusemos em local adequado. Que o Senhor nos permita ser capaz de nos juntarmos a ele na alegria e no júbilo, e de celebrar o nascimento do seu martírio [Ibid., # 81a]

São Cirilo de Jerusalém, em suas Leituras Catequéticas, compostas por volta do ano 350, escreveu:

Façamos menção aos já falecidos; primeiro aos patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, que por suas súplicas e orações Deus receberá nossos pedidos [Ibid., # 852]

Santo Agostinho fazia pregações duas vezes por semana desde sua ordenação em 391 até sua morte em 430. Sobre nosso assunto ele tem a dizer:

A oração, contudo, é oferecida em benefício de outros mortos de quem lembramos, pois é errado rezar por um mártir, a cujas orações nós devemos nos recomendar [Ibid., Vol. III, # 1513]

Em sua obra Contra Fausto, escrito por volta do ano 400, escreve:

O povo cristão celebra unidos em solenidade religiosa a memória dos mártires, tanto para encorajar que sejam imitados e para que possam repartir seus méritos e serem auxiliados pelas suas orações [Ibid., # 1603]

A eficácia da mediação subordinada dos cristãos descansa solenemente na mediação única de Cristo:

Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito (Jo 15,5-7)

Os cristãos são criados em grande 

solidariedade uns com os outros por causa desta união com Cristo (cf. Cl 1,18; Gl 3,28; Rm 7,4; 12, 4-8; 1Cor 6,15; 10,16; 12,12.27; Ef 4,11-12.16; 5,23; Hb 10,10). É esta relação que garante a potência que torna nossa intercessão uns pelos os outros eficaz, estejamos na terra ou no céu.