segunda-feira, junho 15, 2015

O Escapulário e seus Privilégios


Como se explicam as promessas anexas ao escapulário do Carmo? A Justiça Divina poderia, simplesmente em atenção a essa insígnia, permitir que um pecador endurecido não seja condenado?

Dividiremos a resposta em três etapas : 1) origem do escapulário como tal; 2) privilégios anexos ao escapulário do Carmo; 3) valor histórico e significado religioso dos mesmos.

1. Origem do escapulário

O escapulário (do latim scapulo, espádua) é uma longa peça de pano que das espáduas desce sobre o peito e as costas de quem a traja, recobrindo a respectiva túnica. Inicialmente servia de avental durante o trabalho manual. Muito usado entre os monges, tornou-se uma das insígnias características das ordens monásticas e religiosas em geral.

Na Idade Média as Ordens Religiosas propriamente ditas foram criando em torno de si o que se chama «as Ordens Terceiras» (ou as famílias de «Oblatos» e «Oblatas»), compostas de pessoas seculares desejosas de viver em contato assíduo com os mosteiros e conventos (a «Ordem Segunda» era o ramo feminino, enclausurado, de uma Ordem masculina dita «Primeira»). Os Terciários e Oblatos receberam, como distintivo de seu estado, o escapulário. Aos poucos, este foi sendo adotado até pelas Confrarias, associações remotamente vinculadas a determinada Ordem. Então, para facilitar o uso da insígnia, os superiores religiosos resolveram admitir, ao lado do escapulário grande, o escapulário pequeno, que consta de dois retângulos de pano de lã ligados entre si por duas fitas, de sorte a poder ser trazidos pelos irmãos dia e noite sobre o peito e as costas. É esta a forma hoje em dia mais comumente adotada pelos fiéis que vivem no mundo.

Distinguem-se atualmente vários tipos de escapulários segundo as diversas Ordens Religiosas e as modalidades da piedade cristã; o mais famoso é o escapulário marrom ou negro da Ordem do Carmo, ao lado do qual se podem citar: o escapulário branco, da SS, Trindade, propagado a partir de 1200; o escapulário negro, das Sete Dores de Maria, devido aos Servitas, a partir de 1255; o escapulário azul, da Imaculada Conceição, concedido em 1691 e 1710 aos Teatinos; o escapulário vermelho, dedicado à Paixão do Senhor, difundido pelos Lazaristas e aprovado em 1847.

O uso do escapulário não visa apenas ornamentar o respectivo portador. Ao contrário, tem valor religioso digno de nota: significando a filiação a uma Ordem ou Confraria, implica, em quem o traz, o desejo sincero de praticar os conselhos evangélicos (cf. Mt 19,21), na medida em que são aplicáveis à vida no século. Além disto, significa participação nos bens espirituais de que goza a respectiva família religiosa; costuma ser bento e entregue aos fiéis segundo determinado ritual, tornando-se assim um sacramental, ou seja, objeto que comunica a graça em quem o usa com fé e caridade. Vê-se, por conseguinte, que, embora sejam múltiplos os tipos de escapulário, têm todos a mesma finalidade: significar e, ao mesmo tempo, fomentar o serviço aprimorado de Deus, que é a grande devoção de todos os cristãos.

2. Os privilégios anexos ao escapulário do Carmo

Dentre os favores espirituais outorgados ao uso do escapulário, sobressaem os que se prendem ao da Ordem do Carmo. Quais são precisamente?
Enunciam-se dois : a) o privilégio de uma boa morte; b) a pronta libertação do purgatório.
a) A graça da boa morte teria sido prometida pela SS. Virgem numa aparição a S. Simão Stock, sexto Superior Geral dos Carmelitas (1242-1265), em Cambridge, aos 16 de julho de 1251. Trazendo em mão o hábito da Ordem, teria dito a excelsa Senhora : «Eis o privilégio que dou a ti e a todos os filhos do Carmelo: todo aquele que morrer, revestido por este hábito, será salvo».
b) O privilégio «sabatino» afirma que a Virgem SS. liberta do purgatório os irmãos filiados à Ordem do Carmelo no primeiro sábado após a morte de cada um. Este favor, dizem, foi revelado pela própria Mãe de Deus ao Papa João XXII, provavelmente na véspera de sua eleição. O mesmo Pontífice terá anunciado aos fiéis tal graça e várias outras concedidas à Ordem do Carmo mediante a bula «Sacratissimo uti culmine» de 3 de março de 1317.


a) Os documentos sobre os quais se baseia a afirmação dos dois privilégios têm despertado a atenção dos estudiosos, levando-os a perguntar se são fontes históricas de todo fidedignas.
Examinemos o que consta.

O primeiro documento que refere a aparição da Bem-aventurada Virgem a S. Simão Stock data do ano de 1430 aproximadamente; é chamado «Viridarium» do Prior Geral Carmelita João Grossi (cf. Daniel a S. Virg. Maria, Speculum Carmelitarum I. Antverpia 1680,131). Entre o ano em que se terá dado a visão (1251) e a data acima, a história não apresenta documento algum que relate o caso.

No ano de 1642 apareceu pela primeira vez em público, por iniciativa do Pe. Provincial João Chéron O. C., uma carta circular de Simão Stock aos religiosos de sua Ordem, carta em que o Prior Geral referia a aparição e as palavras de Maria. Este documento teria sido ditado pelo Santo a seu secretário, Pe. Swanyngton. Denegam fé a esse instrumento os historiadores modernos, inclusive os Carmelitas (cf. Annales Ord. Carm. 1927 e 1929).

Quanto ao privilégio «sabatino», desde o séc. XVII contesta-se a autenticidade da bula de João XXII que o anuncia ao mundo cristão. Entre a data que este documento traz (1317) e o ano de 1461 não há menção da bula na tradição. O primeiro autor que a deu a conhecer foi o Carmelita Balduíno Laersius (+1483). Hoje em dia não há quem afirme a autenticidade de tal documento. O próprio Pe. Zimmermann na sua coleção de documentos referentes à Ordem do Carmo (Monumenta histórica Carmelitana I 356-363) renunciou a defendê-la. — No texto mesmo da bula paira dúvida sobre uma das passagens principais: lê-se no original latino que a Virgem SS. libertará do purgatório subito (em breve, sem demora) ou, conforme outros códigos, sabbato, no sábado seguinte à morte, as almas dos seus fiéis.

Ademais notam os historiadores que até o séc. XV os membros da Ordem do Carmo não atribuíam maior importância ao uso do escapulário do que os filhos de outras Ordens.

Eis o que, do ponto de vista historiográfico, se poderia dizer sobre as promessas anexas ao escapulário do Carmo.

b) Pergunta-se agora : que resulta disso tudo para a piedade dos fiéis?

Deve-se reconhecer que uma série de Papas, a partir do séc. XVI, tem favorecido o uso do escapulário do Carmo, enriquecendo-o com novas indulgências e permitindo sejam anunciadas aos fiéis as duas promessas acima. Ao fazer isso, porém, nenhum Pontífice intencionou dar definição dogmática sobre o assunto; os Papas apenas quiseram fazer da piedosa crença vigente um estímulo para a piedade dos fiéis. As promessas anexas ao escapulário do Carmo, por conseguinte, ficam pertencendo ao setor das revelações particulares, que cada cristão é livre de admitir ou não, seguindo os critérios que lhe pareçam mais fidedignos.

Observe-se, porém, que o privilegio da boa morte (a primeira das duas promessas) jamais poderá ser entendido em sentido mecânico, como se o uso mesmo do escapulário, independentemente do teor de vida moral do cristão, fosse suficiente para garantir a salvação eterna. Não; o portador do escapulário deverá cultivar as virtudes cristãs para que a dita insígnia lhe possa valer como penhor de especial tutela de Maria SS. na hora da morte. Foi o que o Papa Leão XIII quis inculcar, quando, ao aprovar o Ofício de S. Simão Stock para os católicos ingleses, mandou inserir no texto respectivo uma palavrinha que não se achava no original apresentado a S. Santidade: «Todo aquele que morrer piedosamente trajando esse hábito, não sofrerá as chamas do inferno». Consequentemente comenta J.-B. Terrien:

«Certamente os antigos consideravam o escapulário como penhor de predestinação, mas não chegavam, como penso, ao ponto de dizer que não restem dúvidas justificadas a respeito da salvação de um pecador que na hora da morte rejeite o amparo da religião, embora tenha trazido até o último suspiro a veste sagrada de Maria» (La Mère de Dieu et Ia Mère des hommes IV 304).

As boas disposições espirituais são também exigidas por um comentário do privilégio, comentário atribuído a S. Simão Stock:

«Conservando, meus irmãos, esta palavra em vossos corações, esforçai-vos por assegurar vossa eleição mediante boas obras e por jamais desfalecer; vigiai em ação de graças por tão grande benefício; orai incessantemente a fim de que a promessa a mim comunicada se cumpra para a glória da SS. Trindade,e da Virgem sempre bendita» (cf. Bento XIV, De festis B. V. c. VI § § 7-8).

No tocante ao segundo privilégio, devem-se observar os termos precisos segundo os quais a Santa Sé se tem referido a ele. Um decreto do S. Oficio datado de 15 de fevereiro de 1615 (sob o Papa Paulo V) e renovado pela S. Congregação das Indulgências a 1o de dezembro de 1885 assinala a atitude definitiva do magistério da Igreja sobre o assunto: sem proferir palavra acerca da autenticidade da controvertida bula de João XXII, admite que a Virgem Maria recobrirá com a sua proteção materna, principalmente no sábado (fórmula devida à ambiguidade do texto acima referido: súbito,. sabbato...?), dia consagrado ao seu culto, as almas daqueles que na terra tiverem sido seus fiéis servos.

Aos 4 de julho de 1908, a S. Congregação aprovou uma Súmula de indulgências e privilégios concedidos à Confraria do Escapulário do Carmo, em que se lê verbalmente o seguinte:

«O privilégio comumente chamado sabatino, de João XXII, aprovado e confirmado por Clemente VII, Ex clementis, aos 12 de aposto de 1530, por Pio V, Superna dispositione, aos 18 do fevereiro de 1566, por Gregório XIII, Ut Laudes, aos 18 de setembro de 1577, e por outros, assim como pelo decreto da S. Inquisição Romana sob Paulo V, aos 20 de janeiro de 1613, declara: ‘É permitido aos Padres Carmelitas pregar que os fiéis podem admitir a piedosa crença no auxilio concedido após a morte aos Religiosos e confrades da Associação de Nossa Senhora do Monte Carmelo’. Com efeito, é permitido crer que a SS. Virgem socorra às almas dos Religiosos e confrades falecidos em estado de graça, contanto que tenham trazido durante a vida o escapulário, tenham guardado a castidade do seu estado e recitado o Oficio Parvo da Virgem ou, se não sabem ler, tenham observado os jejuns da Igreja e praticado a abstinência de carne às quartas e sábados, a menos que a festa de Natal caia num desses dias. As orações contínuas de Maria, seus piedosos sufrágios, seus méritos e sua especial proteção lhes são assegurados após a morte, principalmente no sábado, que è o dia consagrado pela Igreja à SS. Virgem».

Neste documento chama a nossa atenção, de um lado, o fato de não serem mencionadas nem a aparição da SS. Virgem nem a bula de João XXII «Sacratissimo uti culmine»; de outro lado, verifica-se que, independentemente desses tópicos, a Santa Sé aprecia a fidelidade ao escapulário do Carmo, mencionando especial proteção de Maria para os verdadeiros devotos do mesmo (o que certamente exclui o porte meramente mecânico de tal insígnia); o documento, porém, não fala de libertação do purgatório no primeiro sábado após a morte, preferindo a fórmula mais geral; «especial proteção». — Como quer que seja, a idéia de sábado no purgatório teria que ser entendida em sentido largo ou translato, visto que a sucessão de dias da semana só pode ser critério na terra, onde o tempo é medido pelo movimento dos corpos; no purgatório há apenas almas separadas de seus corpos.

As considerações e conclusões acima talvez causem surpresa em um ou outro dos nossos leitores. Foram contudo ditadas pela objetividade dos documentos e fatos. Não acarretam, de modo algum, detrimento para a piedade. Muito ao contrário; esta tanto mais forte e frutuosa é quanto mais alicerçada sobre a verdade e o «sentire cum Ecclesia», sobre as normas e declarações da Esposa de Cristo. A cada cristão fica a liberdade de se santificar dando fé às promessas anexas ao escapulário do Carmo. A finalidade destas linhas era apenas a de remover qualquer concepção teologicamente errônea a respeito da tradicional devoção.

Bibliografia
A. Michel, Scapulaire, em «Dictionnaire de Théologie Catholique* XIV 1, Paris 1939, 1254 9).
K. Bihilmeyer, Skapulier, em Lexikon für Theologie und Kirche IX 617.
N. Paulus, Geschichte des Ablasses im Mittelalter II. 1923.
Berlinger-Steinen, Les indulgences. Paris 1925.

Quais as provas da existência de Deus?




FILOSOFIA E RELIGIÃO
MAURÍCIO (Rio de Janeiro): "Quais as provas da existência de Deus?"

Os argumentos clássicos em favor da existência de Deus, já parcialmente esboçados pelo filósofo grego Aristóteles (+322 a. C.), podem-se resumir nas três seguintes vias:


1. A contingência do movimento
a) Há no mundo movimento e mudanças contingentes, transitórios.
O que é uma proposição evidente, ditada pela experiência cotidiana.
b) Ora todo ser que se mova contingentemente, é movido por outro.
Com efeito, "entrar em movimento" ou "mudar" significa “receber uma perfeição ou determinação não possuída”. Doutro lado, “mover” implica "dar tal perfeição". É, porém, impossível que o mesmo ser receba e dê ao mesmo tempo a mesma perfeição, pois, para receber, é preciso não ter; para dar, requer-se que tenha. Dada a impossibilidade de ter e não ter ao mesmo tempo o mesmo objeto, conclui-se que todo ser que entra em movimento ou se move contingentemente (após um estado de inércia), recebe de outro (causa eficiente ou motriz) o princípio de seu movimento. Se ele fosse o próprio princípio adequado de seu movimento, estaria sempre em movimento e mover-se-ia  necessariamente, não contingentemente, deveria estar agindo antes de começar a agir — o que é absurdo.
c) Na série das causas motrizes, deve haver uma, Suprema e Absoluta, que explique o movimento das demais e por nenhuma outra seja explicada. Uma série infinita de causas motrizes dependentes e contingentes nada explicaria, cada qual seria mera transmissora, nenhuma apresentaria a razão de ser do movimento; tal série se poderia comparar a um canal que se prolongasse muito, mas fosse destituído de fonte; ora, se não há fonte, não há nem intermediários (ou canal) nem há efeito. Um conjunto numeroso (diga-se: infinito) de espelhos a refletir uma imagem não dá conta, por si só, da imagem neles refletida; cada um apresenta uma figura espelhada dependente, a qual supõe a figura que se espelha, absoluta.

Poder-se-ia replicar que o processo do movimento se verifica desde toda a eternidade; por isto, não tem princípio. Neste caso, porém, seria desde toda a eternidade que a série dos moventes dependentes exigiria um Movente Absoluto, independente; o simples fato de haver movimento o pede; o tempo ou a duração é apenas medida do fato, mas não constitui uma fonte de energia.

Existe, portanto, um Princípio de todo movimento, o qual por si mesmo possui a sua atividade, sem depender de outro. E tal Movente Absoluto é chamado Deus.

2. Os graus de perfeição dos seres.

a) Observa-se que nada no mundo é absolutamente perfeito, mas tudo parece aproximar-se “mais ou menos” da perfeição simplesmente dita ou do ideal. Quem se serve dos bens desta terra, vive num perpétuo “encanto desencantado”, pois só encontra valores que se desvalorizam. O homem mais prendado de bens materiais e espirituais ainda tem capacidade para apreender mais alguma coisa; também o homem mais santo se vê sempre inferior aos seus propósitos.

b) Ora o relativo supõe necessariamente o Absoluto.
Todo homem que fala de "mais" e "menos (bom, belo, veraz...)", só o faz porque tem em mente, implícito, o conceito do Máximo, daquilo que é "por excelência", sem restrição nem limitação. Quem experimenta o caráter relativo das coisas, reconhece a presença de um Ser Absoluto e Exemplar; é somente a existência deste que justifica a apreciação mais ou menos favorável que se faz das coisas relativas.

Em linguagem mais técnica, as considerações acima se poderiam assim formular: observem-se as perfeições que por si mesmas não dizem imperfeição alguma — a bondade, a beleza, a justiça, a ciência (há, sim, perfeições que em si implicam imperfeição; assim o "arrepender-se", o conhecimento sensitivo, sempre restrito, o "raciocinar progressivamente", sempre sujeito a erros...). Aquelas perfeições em seu conceito não incluem negação nem lacuna; se a intuíssem, dever-se-ia dizer que a bondade é, por sua própria essência, a maldade,... que a beleza é, por sua essência, a feiura, etc. Se, portanto, existe no mundo bondade, mas bondade restrita; se existe beleza, mas beleza restrita deste ou daquele modo; se existe vida, mas vida limitada em tais e tais seres reais, estes seres supõem necessariamente outro que neles tenha limitado a bondade, a beleza, a vida, e que por nenhum outro seja limitado. Em outros termos: supõem outro que neles tenha feito a composição da bondade, da beleza... com aquilo que as restringe, pois tal composição não se explica pela natureza da bondade mesma nem pela da beleza mesma. E esse Compositor há de ser a Bondade Absoluta, irrestrita, a Beleza Absoluta, a Justiça Absoluta — medida e causa eficiente dos seres limitados.

c) Existe, pois, a Perfeição Ilimitada.
O parágrafo b), acima, levava a concluir: existe o absolutamente Belo, o absolutamente Bom, o absolutamente Veraz, etc.

Contudo, se se reflete mais um pouco, verifica-se que Bondade, Beleza, Verdade não são senão modalidades do ser; significam o ser sob determinado aspecto (o ser comparado à inteligência, o ser comparado à vontade, o ser comparado ao senso estético...). Em consequência, afirmar-se-á: há um Ser que é ao mesmo tempo Bom sem limite (a Bondade mesma), Veraz sem limite (a Verdade mesma), Belo sem limite (a Beleza mesma). Este Ser não recebe sua Bondade nem sua Veracidade nem sua Existência de uma fonte extrínseca, mas Ele as tem de per si, por sua própria entidade; se as recebesse de fora, Ele só as poderia receber de maneira limitada, participada (ou em parte). Por conseguinte, esse Ser não tem, mas é, sua própria Perfeição. A Ele se atribui o nome de Deus.

3. A ordem e a finalidade existentes no universo.

a) Quem considera o universo, não pode deixar de nele verificar ordem estupenda e tendência de múltiplos elementos (por si indiferentes a múltiplas possibilidades de concatenação) em demanda de um fim bem determinado.

O "macrocosmos", por exemplo, ou o mundo dos astros, apresenta um conjunto de corpos sabiamente coordenados dentro de proporções "astronômicas", ou seja, que escapam às cifras com que o homem habitualmente lida na terra.

O "microcosmos" ou o mundo do átomo reproduz simetricamente a estrutura do "macrocosmos" ou, mais precisamente, do sistema solar; as minúsculas dimensões e as enormes velocidades dos corpúsculos que giram dentro de um átomo atingem por sua vez cifras astronômicas.

No mundo dos viventes, a harmonia dos elementos que constituem um vegetal ou um animal causa surpresa, dada a complexidade das funções concatenadas em vista da conservação e da defesa da vida. Basta recordar a estrutura de um olho, de um ouvido. Tenha-se em vista outrossim que, quando se extrai um rim de um organismo doentio, o outro logo se desenvolve além das proporções necessárias ao metabolismo normal. Por que isto? — Porque a natureza parece querer possuir uma reserva, "prevendo" o caso eventual de se tornar necessário o trabalho equivalente ao de dois rins. Tais exemplos se poderiam multiplicar.

b) Tão maravilhosa ordem, tão segura tendência a um fim supõem exista uma Inteligência que as tenha concebido e produzido.

Ordem significa adaptação de diversos elementos entre si em vista de certa finalidade a ser obtida. Ora a adaptação supõe a intuição de um efeito ainda não existente na realidade concreta, mas existente idealmente, ou seja, num intelecto, de modo espiritualizado, superior ao modo corpóreo, sensível. Ordem supõe a intuição da natureza íntima ou da essência de cada um dos seres que estão para ser adaptados; supõe o conhecimento daquilo que é perene e latente sob os fenômenos sensíveis e variáveis que cada corpo dá a ver. Somente quem percebe a estrutura íntima dos seres sabe utilizá-los como meios para obter determinado efeito.

Pois bem; um conhecimento tal é característico de um espírito ou de um ser dotado de inteligência (inteligência e espírito se evocam mutuamente; cf. "Pergunte e Responderemos" 3/1957, qu. 1). Só a inteligência é capaz de comparar e apreender as qualidades que podem relacionar ou ligar elementos aparentemente desconexos entre si.

Quem realiza a análise física e química de um relógio, parece explicar perfeitamente as propriedades de cada uma das suas peças: a resistência dos metais, a força das molas, o processo das alavancas, etc. Contudo esse estudioso não explica a escolha de tais peças, nem a sua associação em um maquinismo apto à contagem do tempo. A razão de ser de tal associação não é indicada pela análise das peças do relógio; não se acha latente em nenhuma de suas molas; nenhuma, por sua natureza, explica porque está assim correlacionada com as demais. Tal razão de ser está, sim, contida fora do relógio, num Ser real existente: foi este que por sua inteligência concebeu e realizou a combinação de elementos necessária ao fim preconcebido de marcar o tempo.

O ser inteligente que por via destes raciocínios se chega a descobrir há de ser absoluto, ilimitado, incriado, pois a Ele se deve não apenas o ato de dispor em ordem alguns ou muitos seres preexistentes (deixando de parte outros, como poderia fazer um homem), mas igualmente o de conceber e realizar o plano do universo inteiro e de cada um de seus componentes. A inteligência que concebe e dá existência real a cada ente desde as raízes do seu ser (das quais emanam suas propriedades e atividades), só pode ser o Ser simplesmente dito, o Infinito, que por definição se chama Deus.

Dir-se-á, porém: quem sabe se todas essas estruturas e suas atividades não poderiam ser igualmente produto do acaso?

Não há sério pensador que hoje em dia ainda recorra ao acaso; este expediente implicaria um sofisma clamoroso. De fato; o acaso não é uma causa, nem um agente, mas o cruzamento não necessário de causas independentes umas das outras; vem a ser, portanto, uma relação entre elementos preexistentes, um mero acontecimento verificado entre estes. A intervenção do acaso não explica a origem dos agentes que "casualmente" se encontram e combinam.

O seguinte exemplo, muito famoso, ainda concorre para evidenciar o absurdo da hipótese do acaso: considere-se uma só molécula de proteína, substância que entra na constituição de qualquer corpo vivo; suponha-se, para simplificar os cálculos, que tenha o peso molecular 20.000 e conste de 2.000 átomos pertencentes a duas espécies apenas. A probabilidade de se formar por acaso uma tal molécula se reduz a: 2,02 x 10-321 ou 2,02 x 1/10321 !

O volume de substância necessária para que uma tal probabilidade se realize, seria o de uma esfera cujo raio exigiria 1082 anos-luz para lhe percorrermos a distancia. Quem lançasse ao acaso os átomos componentes de tal molécula de proteína ao ritmo de 500 trilhões de vibrações por segundo, dispondo de um volume de átomos igual ao da esfera terrestre, precisaria de 10243 bilhões de anos para obter uma só molécula de proteína. Não esqueçamos, porém, que a Terra só existe há dois bilhões de anos e que a vida nela apareceu há cerca de um bilhão de anos apenas! Leve-se outrossim em conta que um ser vivo se compõe de bilhões de células de proteína e que, segundo a linguagem dos fósseis, bilhões de seres vivos tiveram origem sobre a terra em lapso de tempo notàvelmente breve. É o que leva a rejeitar peremptoriamente a origem aleatória do mundo.

Os três grandes argumentos acima, de índole metafísica, são confirmados pelo testemunho da natureza humana mesma:

a) todos os povos através dos séculos professaram a crença em Deus. Esta proposição foi lançada em descrédito no século passado, quando Darwin comunicou ao mundo ter encontrado na Terra do Fogo um grupo de índios, os Yamana, destituídos de religião (1834). Novas explorações, porém, empreendidas no século 20 por estudiosos austríacos, mais competentes em Etnologia do que o naturalista Darwin, levaram a ver que os mencionados aborígenes têm religião, e religião assaz pura. Ulteriores pesquisas entre as tribos primitivas do mundo atual incutiram mesmo a conclusão seguinte: quanto mais simples é o grau de cultura de um clã, tanto mais simples e puro é também o seu conceito de Deus; o politeísmo, a magia são desvirtuamentos da religião primitiva, desvirtuamentos que o homem é tentado a realizar quando entra em contato mais assíduo com as forças da natureza; tende então ilogicamente a esfacelar o conceito de Deus e distribuir os atributos divinos pelos seres materiais de que ele depende para efetuar sua indústria e seu comércio;

b) também merece atenção o brado de todo indivíduo humano em demanda de bem-aventurança. Não há quem não queira ser feliz, e feliz sem limites, pela posse de um bem que nunca se acabe. Ora tal sede inata só se explica razoavelmente se de fato existe o Objeto infinitamente bom a ela correspondente; a natureza se manifesta em tudo harmoniosa, coerente consigo mesma. É o Bem Infinito que fala pela consciência de todo indivíduo, chamando-o a si mediante a norma gravada, no íntimo de cada um: "Faze o bem, evita o mal". É esse mesmo Ser que se faz ouvir pelo remorso consequente a uma violação da consciência.

Ó grandeza do homem, a de não estar condenado a viver e morrer de si para si! É, ao contrário, entre o Alfa e o Omega que ele se move neste mundo!

Sobre o tema abordado nesta resposta, pode-se consultar com proveito:
P. Cerruti, A Caminho da Verdade Suprema; Universidade Católica do Rio de Janeiro 1954, 461-584.
J. A. O’Brien, Deus existe? Editora Vozes de Petrópolis 1949.
Lecomte du Noüy, O homem e o seu destino. Editora Educação Nacional, Porto 1953.

O DIABO VIVO E ATUANTE NO MUNDO




por Corrado Balducci S.J.

O autor é especialista em demonologia, tratado que nos últimos anos tem ficado de lado nos cursos de Teologia.
Afirma a existência e as características do demônio bem como sua atividade no mundo de hoje.
No tocante à queda dos anjos, Balducci propõe três hipóteses:

1) pecaram por orgulho, não querendo submeter-se ao domínio de Deus;
2)  os anjos pecaram por inveja ao tomarem conhecimento da dignidade a que foi elevada a criatura humana no estado paradisíaco;
3)  pecaram por não querer adorar o Filho de Deus feito homem. Esta terceira hipótese é a mais divulgada.

Quanto ao número de demônios existentes, o autor não o pode definir, mas julga que é muito elevado.

A atividade do demônio no mundo pode ser ordinária (as tentações ao pecado) ou extraordinária (infestação e possessão). Importante é notar que Balducci, embora dedique seus estudos à demonologia, julga ser raros os casos de atuação extraordinária do Maligno. Eis como se pronuncia:

"Este segundo tipo de atividade diabólica é chamado de 'extraordinária' porque é muito rara. De acordo com a providência e governo de Deus, o mundo segue as leis e estruturas que foram decretadas pelo Criador e sintetizadas naquilo que é chamado de lei natural. O que quer que ocorra fora desta estrutura - prodígios, milagres, fenômenos preternaturais - é excepcional e, portanto, extraordinário" (p. 119).

Em particular sobre a possessão diabólica escreve Balducci:

"Quando se faz um diagnóstico dos três tipos de intervenção diabólica - infestação local, infestação pessoal e possessão diabólica - não se pode concluir automaticamente, a partir dos sintomas somente, que um dado fenômeno é de origem diabólica. Como temos visto, as ciências da psiquiatria e da parapsicologia também investigam muitos destes mesmos sintomas e, por isso, a possibilidade de haver possessão diabólica deve ser verificada em cada caso individualmente. A intervenção diabólica não pode mais ser postulada, como no passado, baseando-se simplesmente num fenômeno externo que parece ser sobrenatural. Antes, deve-se sempre trabalhar com a hipótese de que haja uma explicação natural para tal fenômeno. Em outras palavras, não se pode nunca atribuir qualquer fenômeno a uma causa preternatural ou sobrenatural quando houver a menor possibilidade de que possa ter uma explicação natural. De fato, não se pode atribuir a causa de um fenômeno à intervenção de superpoderes a menos que se tenha demonstrado a impossibilidade de uma explicação natural. Consequentemente, uma intervenção preternatural ou diabólica nunca pode ser proposta como uma hipótese inicial de trabalho ou, o que é pior, como uma teoria do oculto; tal intervenção pode ser postulada apenas depois de ter sido provada, caso a caso"(R 141).

Balducci assim exprime fielmente o pensamento da Igreja. Esta aceita a possibilidade da possessão diabólica; quer, porém, que cada possível caso seja criteriosamente estudado por peritos em Teologia e em Medicina para não ser confundido um fenômeno patológico com possessão diabólica.

(...)

O Catolicismo não é apavorado, pois sabe que o demônio é um cão amarrado que pode latir muito, mas só morde alguém se lhe chega perto (S. Agostinho).


Dom Estêvão Bettencourt (OSB)