quinta-feira, abril 30, 2015

A Virgindade Perpétua de Maria




Tratado de São Jerônimo contra Helvídio

Este tratado surgiu por volta do ano 383 dC, quando Jerônimo e Helvídio se encontravam em Roma, no tempo do papa Dâmaso. As únicas informações contemporâneas que se conservam de Helvídio são estas, fornecidas por Jerônimo.
A questão que trouxe este tratado à luz foi: teria a Mãe de Nosso Senhor permanecido virgem após o nascimento de seu Filho? Helvídio afirmava que os Evangelhos mencionando os "irmãos" e "irmãs" do Senhor provavam que Maria teria tido outros filhos, baseando sua opinião nos escritos de Tertuliano e Vitorino.
A conclusão deste ponto de vista é que a virgindade se situa numa posição inferior ao casamento. Jerônimo defende o outro lado, mantendo três proposições contra Helvídio:
José era o suposto marido de Maria, mas não o era de fato;
Os "irmãos" do Senhor eram seus primos (parentes), não irmãos de verdade; e
A virgindade é superior ao estado de casado.
A primeira proposição ocupa os capítulos 3 a 8. Baseia-se no registro de Mt 1,18-25, especialmente nas palavras: "antes que coabitassem" (cap. 4) e "não a conheceu até que" (caps. 5-8).
A segunda, gira em torno da expressão: "filho primogênito" (caps. 9-10), que Jerônimo afirma ser aplicável não apenas ao primeiro de uma série de vários filhos, mas também ao filho único. Quanto à menção dos irmãos e irmãs de Jesus, Jerônimo garante serem filhos de outra Maria, esposa de Cléofas ou Clopas (caps. 11-16); para fundamentar sua posição, cita diversos escritores da Igreja (cap. 17).
Na terceira e última parte, para sustentar a preferência da virgindade sobre o casamento, Jerônimo afirma que não apenas Maria mas também José mantiveram seu estado virginal (cap. 19); diz, também, que embora o casamento possa ser um estado santo, apresenta grandes obstáculos para a oração (cap. 20) e que o ensinamento da Escritura declara que o estado de virgindade e continência estão mais de acordo com o desejo de Deus do que o casamento (caps. 21-22).
SÃO JERÔNIMO: A VIRGINDADE PERPÉTUA DE MARIA
Parte I
Introdução
CAPÍTULO I
Há algum tempo, recebi o pedido de alguns irmãos para responder a um panfleto escrito por um tal Helvídio. Demorei para fazê-lo, não porque fosse tarefa difícil defender a verdade e refutar um ignorante sem cultura, que dificilmente tomou contato com os primeiros graus do saber, mas porque fiquei preocupado em oferecer uma resposta digna, que desmoronasse os seus argumentos.
Havia ainda a preocupação de que um discípulo confuso (o único sujeito do mundo que se considera clérigo e leigo; único também, como se diz, que pensa que a eloqüência consiste na tagarelice, e que falar mal de alguém torna o testemunho de boa fé) poderia passar a blasfemar ainda mais, caso lhe fosse dada outra oportunidade para discutir. Ele, então, como se estivesse sobre um pedestal, passaria a espalhar suas opiniões em todos os lugares.
Também temia que, quando caísse na realidade, passasse a atacar seus adversários de forma ainda mais ofensiva.
Mas, mesmo que eu achasse justos todos esses motivos para guardar silêncio, muito mais justamente deixaram de me influenciar a partir do instante em que um escândalo foi instaurado entre os irmãos, que passaram a acreditar nesse falatório. O machado do Evangelho deve agora cortar pela raiz essa árvore estéril, e tanto ela quanto suas folhagens sem frutos devem ser atiradas no fogo, de tal maneira que Helvídio - que jamais aprendeu a falar - possa aprender, finalmente, a controlar a sua língua.
CAPÍTULO II
Invoco o Espírito Santo para que Ele possa se expressar através da minha boca e, assim, defenda a virgindade da bem-aventurada Maria. Invoco o Senhor Jesus para que proteja o santíssimo ventre no qual permaneceu por aproximadamente dez meses, sem quaisquer suspeitas de colaboração de natureza sexual. Rogo também a Deus Pai para que demonstre que a mãe de Seu Filho - que se tornou mãe antes de se casar - permaneceu Virgem ainda após o nascimento de seu Filho.
Não desejamos entrar no campo da eloqüência, nem usar de armadilhas lógicas ou dos subterfúgios de Aristóteles. Usaremos as reais palavras da Escritura; [Helvídio] será refutado pelas mesmas provas que empregou contra nós, para que possa ver que lhe foi possível ler conforme está escrito, e, ainda assim, foi incapaz de perceber a conclusão de uma fé sólida.
José era o suposto marido de Maria; não era marido de fato
CAPÍTULO III
Sua primeira declaração é: "Mateus diz: 'O nascimento de Jesus Cristo foi assim: quando sua mãe Maria estava prometida a José, antes de coabitarem, encontrou-se grávida pelo Espírito Santo. E José, seu marido, sendo um homem justo e não desejando denunciá-la publicamente, pensou em repudiá-la em segredo. Mas enquanto pensava essas coisas, um anjo do Senhor lhe apareceu em sonho e disse: 'José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo'. Notem" - continua ele - "que a palavra empregada é 'prometida' e não 'confiada', como vocês dizem; é óbvio que a única razão para estar prometida é porque deveria se casar um dia. E o Evangelista não iria dizer 'antes de coabitarem' se eles não viessem a coabitar no futuro, já que ninguém usaria a frase 'antes de jantar' se certa pessoa não fosse jantar. Também o anjo a chama 'tua esposa' e se refere a ela como unida a José. A seguir, somos chamados a ouvir a declaração da Escritura: 'E José despertou do seu sono e fez como o anjo do Senhor lhe havia ordenado, tomando-a para si como esposa; e não a conheceu até que deu à luz a seu filho'".
CAPÍTULO IV
Consideremos cada um desses pontos, pois seguindo o caminho dessa impiedade mostraremos que ele [Helvídio] está se contradizendo. Admite que [Maria] estava "prometida" e que o próximo passo seria se tornar esposa daquele homem a quem estava prometida. Novamente, ele a chama de "esposa" e diz que a única razão para estar prometida seria pelo fato de casar-se um dia. E, temendo que não o compreendêssemos suficientemente bem, ainda diz: "a palavra usada é 'prometida' e não 'confiada', isto é, ela ainda não se tornara esposa, nem mesmo havia sido unida pelo contrato de casamento".
Mas quando ele continua: "o Evangelista jamais usaria tais palavras se eles não viessem a se juntar futuramente, já que não se usa a frase 'antes de jantar' se certa pessoa não for jantar", sinceramente não sei se devo lamentar ou rir. Deveria acusá-lo de ignorância ou de imprudência? Como se isto, supondo que uma pessoa dissesse: "Antes de jantar no porto, naveguei para a África", significasse que tais palavras obrigatoriamente demonstrassem que essa pessoa alguma vez já jantou no porto. Se eu preferisse dizer: "o apóstolo Paulo, antes de ir para a Espanha, foi preso em Roma", ou (como também acho provável) "Helvídio, antes de se arrepender, morreu"; acaso teria Paulo obrigatoriamente estado na Espanha [após a prisão], ou Helvídio se arrependeria após a morte, ainda que a Escritura diga: "No Sheol quem vos dará graças?"?
Não podemos entender a preposição "antes" - ainda que muitas vezes signifique ordem no tempo - como também ordem de pensamento? Portanto, não há necessidade que nossos pensamentos se concretizem, se alguma causa suficiente vier a evitá-los (sua concretização). Logo, quando o Evangelista diz "antes que coabitassem", indica apenas o tempo imediatamente precedente ao casamento, e mostra que estava em estado bem adiantado, pois ela já estava prometida, a ponto de estar próximo o momento de se tornar esposa. Conforme diz [o Evangelista], antes de se beijarem e se abraçarem, antes da consumação do casamento, ela se encontrou grávida. E ela foi determinada para pertencer a ninguém mais a não ser José, que guardou com zêlo o ventre cada vez maior de sua prometida, com olhar inquieto mas que, a esta altura, quase que com o privilégio de um marido.
Ainda que possa parecer - conforme o exemplo citado - que ele teve relações sexuais com Maria após o seu parto, o seu desejo poderia ter desaparecido pelo fato dela já ter concebido anteriormente. E, embora encontremos que foi dito a José em um sonho: "Não temas em receber Maria por tua esposa" e, de novo: "José despertou do seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a por sua esposa", não devemos nos preocupar com isto, pois ainda que seja chamada "esposa", ela somente deixou de ser prometida, pois sabemos que é usual na Escritura dar esse título para aqueles que são noivos.
A seguinte evidência, retirada do Deuteronômio, assim o indica: "Se um homem" - diz o Escritor [sagrado] - "encontra uma mulher prometida no campo e a violenta, deve ser morto porque humilhou a esposa do seu próximo"; e, em outro lugar: "Se uma virgem é prometida a um marido, e um homem a encontra na cidade e a violenta, então deveis trazê-los para fora do portão da cidade e os apedrejareis até à morte; a mulher porque não gritou, estando na cidade, e o homem porque humilhou a esposa do seu próximo. Fareis isto para eliminar o mal do meio de vós"; e também, em outra parte: "Que tipo de homem é este que possui uma esposa prometida e ainda não a recebeu? Que volte para sua casa, para que não morra na batalha, e que outro homem a despose".
Mas se alguém guarda dúvidas do porquê a Virgem concebeu após estar prometida [a José], uma vez que não estava prometida a mais ninguém, ou, para usar os termos da Escritura, estava sem marido, deixe-me explicar três razões: [1ª] Pela genealogia de José, Maria possuía parentesco com ele, e a origem de Maria também precisava ser demonstrada; [2ª] Porque ela não poderia ser enquadrada na Lei de Moisés para ser apedrejada como adúltera; [3ª] Porque em sua fuga para o Egito ela precisava de segurança, o que poderia ser obtido com a ajuda de um guardião, de preferência um marido.
Quem, naquele tempo, acreditaria na palavra da Virgem, de que teria concebido pelo poder do Espírito Santo, e que o anjo Gabriel lhe teria aparecido para anunciar o propósito de Deus? Todos não a chamariam de adúltera, como fizeram com Suzana? Ainda nos tempos presentes, quando praticamente toda a terra abraçou a Fé, não vêm os judeus afirmar que as palavras de Isaías: "Eis que a 'Virgem' conceberá e dará à luz um filho" são equívocas porque o termo hebraico almah que aparece na frase, significa mulher jovem, enquanto que o termo bethulah, que significa virgem não é usado? Tal posição, abordaremos com mais detalhes adiante.
Finalmente, com exceção de José, Isabel e da própria Maria - e talvez de mais alguns poucos que podemos supor ouviram a verdade da boca deles - todos supunham que Jesus era filho de José. E de tal modo era essa a suposição que até mesmo os Evangelistas, expressando a opinião corrente - que é a regra correta para qualquer historiador - o chamavam de pai do Salvador, como, por exemplo: "Movido pelo Espírito, ele (isto é, Simeão) veio ao Templo. Então os pais trouxeram o menino Jesus para cumprir as prescrições da Lei a seu respeito"; e, em outro lugar: "E seus pais iam todos os anos a Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa"; e, mais adiante: "Tendo completado os dias, eles retornaram, mas o menino Jesus permaneceu em Jerusalém, e seus pais não sabiam disso".
Note-se que a própria Maria respondeu ao [anjo] Gabriel com as seguintes palavras: "Como se sucederá isso, se não conheço varão?", dizendo isto a respeito de José; e, mais: "Filho, por que fizeste isto conosco? Teu pai e eu estávamos à tua procura". Não fazemos uso aqui, como muitos fazem, do discurso dos judeus ou dos escarnecedores. Os Evangelistas chamam José de "pai" e Maria confessa que ele era pai. Não - como já disse antes - que José fosse realmente o pai do Salvador, mas, preservando a reputação de Maria, todos o viam como sendo o pai [de Jesus], pois ouvira a advertência do anjo: "José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa, pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo", pois pensava em repudiá-la em segredo; tudo isto bem demonstrando que o filho não era dele.
Ao dizermos tudo isto, mais com o objetivo de oferecer uma instrução imparcial do que responder a um oponente, mostramos o porquê José era chamado de pai de Nosso Senhor e o porquê Maria era chamada de esposa de José. Isto também responde ao porquê de certas pessoas serem chamadas de "seus irmãos".
CAPÍTULO V
Entretanto, este último ponto encontrará seu lugar apropriado mais adiante. 
Vamos agora abordar outros tópicos. A passagem que discutiremos agora é: "E José despertou de seu sono e fez conforme o anjo lhe ordenara, tomando-a como sua esposa; e não a conheceu até que deu à luz a um filho, e ele lhe colocou o nome de Jesus". Aqui, antes de mais nada, é absolutamente inútil para o nosso oponente querer demonstrar, de forma tão elaborada, que essas palavras se referem à cópula sexual, especialmente na compreensão intelectual: qualquer um pode negar isso e toda pessoa de bom senso pode imaginar a estupidez da refutação que Helvídio se esforçou por sustentar. Ele quer nos ensinar que o advérbio "até que" implica um tempo fixo e definitivo que, ao se completar, ocorre o evento que até então não se realizara; como neste caso: "e não a conheceu até que deu à luz um filho".
Segundo ele, é claro que ela [Maria] foi conhecida depois, e que apenas aguardara o tempo necessário para o nascimento de seu filho. Para defender sua posição, [Helvídio] amontoa textos e mais textos sem qualquer critério, comportando-se como um gladiador cego que fica movimentando sua espada a esmo, dizendo asneiras com sua língua barulhenta e terminando sem ferir ninguém, a não ser a si próprio.
CAPÍTULO VI
Nossa resposta é brevemente esta: as palavras "conhecer" e "até que", na linguagem da Sagrada Escritura, possuem duplo significado. Do primeiro [quanto a "conhecer"], ele mesmo [Helvídio] nos ofereceu uma dissertação para mostrar que pode se referir a relação sexual, como também ninguém duvida que pode ser usada para significar percepção (entendimento, saber), como, por exemplo: "o menino Jesus permaneceu em Jerusalém e seus pais não tinham conhecimento disso".
Já que provamos que ele seguiu o uso da Escritura neste caso, com relação à expressão "até que" será completamente refutado pela autoridade da mesma Escritura, pois várias vezes significa um certo tempo sem limitação, como quando Deus diz a certas pessoas pela boca do profeta: "Até à vossa velhice Eu sou o mesmo"; acaso Ele deixará de ser Deus após essas pessoas envelhecerem? E, no Evangelho, o Salvador diz aos Apóstolos: "Estarei convosco até a consumação do mundo"; será que quando chegar o fim dos tempos o Senhor abandonará Seus discípulos e estes, quando estiverem sentados sobre os doze tronos para julgar as doze tribos de Israel, estarão privados da companhia de seu Senhor?
Também Paulo, ao escrever aos Coríntios, declara: "[Cada um, porém, na sua ordem:] Cristo, as primícias; depois os que são de Cristo, na sua vinda. Então virá o fim quando ele entregar o reino a Deus o Pai, quando houver destruído todo domínio e toda autoridade e todo poder. Pois é necessário que Ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés". Certos de que a passagem relata a natureza humana de Nosso Senhor, não temos como negar que as palavras são Daquele que sofreu [morte] na cruz e que mais tarde se sentou à direita [de Deus]. O que Ele quer demonstrar ao dizer que "é necessário que Ele reine até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés"? O Senhor reinará apenas até colocar todos os seus inimigos sob os seus pés e, depois disso, deixará de reinar? É óbvio que seu reino estará começando quando seus inimigos estiverem sob os seus pés.
Também Davi, na Quarta Canção da Ascensão, fala assim: "Olhai: assim como os olhos dos servos olha para a mão de seu mestre; assim como os olhos da moça olham para a mão de sua senhora; assim também os nossos olhos olham para o Senhor, nosso Deus, até que tenha misericórdia de nós". Será então que o profeta, olhando para Deus com o intuito de obter misericórdia, irá desviar seu olhar para o chão assim que obtiver misericórdia? [Certamente que não,] ainda que ele, em algum lugar, diga: "Meus olhos quedam pela tua salvação e pela palavra da tua justiça".
Eu poderia acrescentar inúmeras passagens como estas que, atestam esse uso, e cobriria com uma nuvem de provas a verbosidade do nosso contendente. Porém, acrescentarei mais algumas passagens e deixarei que o leitor descubra outras semelhantes por si mesmo.
CAPÍTULO VII
A Palavra de Deus diz em Gênesis: "Entregaram a Jacó todos os deuses estranhos que tinham em suas mãos, e as argolas que penduravam em suas orelhas; e Jacó os escondeu debaixo do carvalho que está junto a Siquém , e continuam perdidos até o dia de hoje". Igualmente lemos no final do Deuteronômio: "Assim, Moisés, servo do Senhor, morreu ali na terra de Moab, conforme a palavra do Senhor. E foi sepultado no vale, na terra de Moab, defronte de Beth-Peor; até o dia de hoje ninguém sabe o lugar da sua sepultura". Certamente devemos identificar a expressão "até o dia de hoje" com o tempo da composição da história, podendo vocês preferirem o ponto de vista que afirma que Moisés foi o autor do Pentateuco ou que Esdras o reeditou. Não faço qualquer objeção em ambos os casos. A questão agora é saber se as palavras "até o dia de hoje" se referem à época da publicação ou composição desses livros e, caso o sejam, por que [Helvídio] não mostra - agora que muitos e muitos anos se passaram desde aquele dia - que os ídolos escondidos sob o carvalho ou a sepultura de Moisés foram descobertos, já que ele sustenta, com demasiada teimosia, que certa coisa não pode ocorrer dentro de um espaço de tempo delimitado pela expressão "até que" mas, para que venha a ocorrer, é necessário que atinja aquele ponto delimitado por "até que"?
Ele faria bem se prestasse atenção ao idioma da Sagrada Escritura e compreendesse como nós - já que se encontra mergulhado na lama; certas coisas parecem ambíguas quando não claramente declaradas, embora outras coisas sejam deixadas assim para exercitar o nosso intelecto. Ora, se ainda quando o evento permanecia fresco na memória daqueles homens que viram e conviveram com Moisés já se desconhecia o local da sepultura, quanto mais agora depois que tantos anos se passaram!
E da mesma forma devemos interpretar o que se conta a respeito de José. O Evangelista apontou uma circunstância que poderia causar escândalo, ou seja, que Maria não foi conhecida por seu marido até dar à luz, e ele (o Evangelista) agiu assim para que tivéssemos a certeza de que ela - de quem José se absteve enquanto havia lugar para dúvidas sobre a importância da visão - não foi conhecida depois de seu parto.
CAPÍTULO VIII
Em resumo: o que eu gostaria de saber é por que José teria se privado [de Maria] até o dia de ter ela dado à luz? Helvídio certamente responderia: "Porque ele ouviu o que o anjo disse: 'pois o que nela foi gerado provém do Espírito Santo'". Nós, então, responderíamos a seguir que [José] certamente ouviu o que o [anjo] disse: "José, filho de Davi, não temas em tomar para ti Maria como tua esposa". A razão pela qual ele estava proibido de repudiar sua esposa era porque não achava que ela fosse adúltera. Seria então verdade que o [anjo] ordenara que não tivesse relações sexuais com sua esposa? Não está suficientemente claro que a advertência feita foi para que não se separasse dela? E poderia o homem justo pensar em se aproximar dela tendo ouvido que o Filho de Deus estava em seu ventre? Ótimo! Vamos então acreditar que o mesmo homem que deu tanto crédito a um sonho, não se atreveu a tocar em sua esposa, mesmo depois, quando ele ouviu dos pastores que o anjo do Senhor desceu dos céus e lhes disse: "Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria, que o será também para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de Davi, o Cristo Senhor"; e após, quando a multidão celeste se juntou ao anjo e entoaram: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade"; e ainda quando o justo Simeão abraçou a criancinha e exclamou: "Podeis levar agora para ti este teu Servo, Senhor, pois os meus olhos viram a tua salvação, conforme a tua palavra"; e também quando [José] viu a profetisa Ana, os Magos, a Estrela [de Belém], Herodes, os anjos...
Eu diria então: quer Helvídio nos fazer acreditar que José, muito bem inteirado de tamanhas maravilhas, ousaria tocar o templo de Deus, a morada do Espírito Santo, a mãe do seu Senhor? Maria mantinha todos esses eventos "guardados em seu coração". Vocês não podem cair na vergonha de dizer que José desconhecia tudo isso, pois Lucas nos diz: "Seu pai e sua mãe ficavam maravilhados das coisas que diziam a Seu respeito".
E vocês ainda afirmam, arrogantemente, que a leitura dos manuscritos gregos é corrupta, embora seja exatamente isso que todos os escritores gregos fizeram constar em seus livros, e não apenas eles, mas também muitos escritores latinos interpretaram as palavras da mesma forma... E nem precisaremos considerar as variações existentes nas cópias, pois todos os registros existentes, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, se encontram assim desde que foram traduzidos para o Latim; portanto, devemos crer que a água da fonte brota mais pura que a [água] do rio.
Os "irmãos" do Senhor eram primos (parentes); não irmãos de fato
CAPÍTULO IX
Helvídio poderá responder: "O que você diz é, na minha opinião, insignificante. Seus argumentos foram perdidos no tempo e esta discussão demonstra mais astúcia do que verdade. Por que a Escritura não diria como diz de Tamar e Judá: 'E ele a tomou como sua esposa e jamais a conheceu'? Porque Mateus não usou estas palavras se quisesse mesmo expressar esse significado? Ele diz claramente: 'e não a conheceu até que deu à luz a um filho'. Logo, após o parto, certamente a conheceu, pois se privou dela até o momento do parto".
CAPÍTULO X
Se vocês são tão contenciosos, deveriam com suas próprias idéias testar o vosso mestre. Vocês não devem permitir que se faça uma separação entre o parto e o intercurso (sexual). Não devem dizer: "Se uma mulher conceber e tiver um menino, será imunda sete dias; assim como nos dias da impureza de suas regras, será imunda. No oitavo dia, circundar-se-á o prepúcio do menino e, durante trinta e três dias, ela ficará ainda purificando-se do seu sangue e não tocará em qualquer coisa sagrada" e outras coisas semelhantes. Devem recordar que se José se aproximasse dela, estaria sujeito à reprovação de Jeremias: "São como cavalos de lançamento bem nutridos, que andam relinchando cada um à mulher do seu próximo".
De outra maneira, como se explicariam as palavras "e não a conheceu até que deu à luz a um filho", se ele ainda deveria aguardar o término do tempo de purificação, pois senão o seu desejo acabaria por sofrer com um período ainda mais longo, de 40 dias? A mãe precisava se purificar da mácula de seu filho recém-nascido de modo que este ficava sob os cuidados da parteira, enquanto o marido apoiava sua esposa enfraquecida. Portanto, é certo que [José e Maria] se casaram, já que o Evangelista não pode ser acusado de ter mentido. Mas Deus nos livre de pensarmos tais coisas a respeito da mãe do Salvador e de um homem justo! Nenhuma parteira assistiu ao nascimento de Jesus; nenhuma mulher se intrometeu ali. Com suas próprias mãos [Maria] envolveu o Menino em pedaços de pano; ela mesma foi mãe e parteira, e, como nos é relatado, "O colocou numa manjedoura, pois não havia nenhum quarto para eles na pousada"; eis a declaração [canônica] que refuta as estórias apócrifas, pois foi Maria mesma que o envolveu em pedaços de pano e o que se sucederia a partir daí torna impossível a maliciosa idéia de Helvídio, uma vez que não havia um local adequado para o ato sexual naquela pousada.
CAPÍTULO XI
Darei agora uma resposta mais ampla a respeito das palavras "antes que coabitassem" e "não a conheceu até que deu à luz a um filho". Mas devo observar primeiro que a minha resposta segue a ordem do argumento dele até o terceiro ponto, pois ele dirá que Maria teve outros filhos quando cita a passagem: "E José se dirigiu até a cidade de Davi, para se inscrever com Maria, sua noiva, que estava grávida. Enquanto lá estavam, completaram-se os dias para o parto e ela deu à luz ao seu filho primogênito". Esforça-se, assim, para provar que o termo "primogênito" só pode ser aplicado a uma pessoa que teve outros irmãos e que, no caso, seriam filhos de seus pais.
CAPÍTULO XII
Nossa posição é esta: todo filho único é primogênito, mas nem todo primogênito é filho único. Por primogênito entendemos não apenas aquele que pode ser sucedido por outros, mas aquele que não teve predecessor. Assim diz o Senhor a Abraão: "Todo aquele que abrir o útero, de toda a carne, será oferecido ao Senhor; tanto de homens como de animais, será teu. Contudo, os primogênitos dos homens deverão ser resgatados; também os primogênitos dos animais impuros resgatarás".
A palavra de Deus define "primogênito" como todo aquele que abriu o útero. Ora, se o título pertence apenas àqueles que têm irmãos mais jovens, então os sacerdotes não poderiam reivindicar o primogênito até que outros sucessores nascessem, pois, caso contrário, isto é, se não houvesse outros partos, seria necessário provar o estado de primogênito e não simplesmente o de filho único.
"E aqueles que devem ser resgatados com um mês de idade, devem ser resgatados , de acordo com tua estimativa por cinco siclos [de moedas], além do siclo do santuário. Mas o primogênito de um boi ou de uma ovelha ou de uma cabra, não deverás resgatar; eles são sagrados". A palavra de Deus me compele a dedicar a Deus o que quer que abra o útero se for o primogênito de animais puros; se de animais impuros, devo resgatá-lo, dando o valor devido ao sacerdote.
Poderia replicar: Por que me sujeitais ao curto espaço de um mês? Por que falais do primogênito, quando não posso dizer que há irmãos que irão nascer? Esperai até que nasça o segundo filho.
Não explico nada ao sacerdote, como se apenas o nascimento do segundo desse ao primeiro que tive a condição de primogênito. Não deveria, ao pé da letra, chamar-me e convencer-me de louco, se em vez de declarar que primogênito é um título devido àquele que rompe o útero, pretendesse restringir essa condição àqueles que após terão irmãos? Então, tomando o caso de João: estamos de acordo que ele foi filho único; eu precisaria saber se ele não foi também filho primogênito, e se não foi absolutamente sujeito à lei. Não há dúvidas quanto a isso.
À toda hora a Escritura assim fala do Salvador: "E quando chegou o dia de sua purificação, de acordo com a lei de Moisés, eles o levaram a Jerusalém para apresentá-lo ao Senhor [como está prescrito na lei do Senhor, todo macho que abre o útero deve ser consagrado ao Senhor] e para oferecer em sacrifício de acordo com o que é prescrito na lei do Senhor, um par de rolinhas ou duas pombas novas". Se esta lei se refere somente aos primogênitos, e esses deveriam ser os primogênitos com irmãos sucessores, ninguém seria obrigado pela lei se não pudesse afirmar que houve sucessores. Mas visto que, como aquele que não tem irmãos mais novos, é sujeito à lei do primogênito, deduzimos que é chamado primogênito aquele que abre o útero da mãe e que não foi precedido por ninguém, e não aquele cujo nascimento foi seguido por outro de irmão mais novo.
Moisés escreve no Êxodo: "E acontecerá ao passar da meia-noite que o Senhor ferirá todos os primogênitos das terras do Egito, desde o primogênito do Faraó que reina em seu trono até os primogênitos dos cativos que estiverem nas prisões; e todos os primogênitos do acampamento". Diga-me: eram os que pereceram pelas mãos do Exterminador somente seus primogênitos, ou alguém mais, ou seja, os filhos únicos? Se somente aqueles que tinham irmãos eram chamados primogênitos, somente os filhos únicos escaparam da morte. E se, de fato, os filhos únicos foram trucidados, isso se opõe à sentença pronunciada, porque nascidos para morrer eram somente os primogênitos. Você deverá ou livrar os filhos únicos da pena, e nesse caso, se tornará ridículo; ou, se concorda que eles foram mortos, ganhamos a questão, embora não tenhamos de lhe agradecer isso, porque os filhos únicos eram também primogênitos.
CAPÍTULO XIII
A última proposição de Helvídio era esta, e era o que ele queria demonstrar quando tratou dos primogênitos, afirmando que são citados nos Evangelhos os irmãos de Jesus. Por exemplo: "Ora, sua mãe e seus irmãos permaneciam procurando falar com Ele". E em outro lugar: "Depois disso Ele foi para Cafarnaum, com sua mãe e seus irmãos". E de novo: "Seus irmãos então lhe disseram: 'Parte daqui e vai para a Judéia, porque teus discípulos podem também testemunhar as obras que fazes. Porque ninguém faz nada em segredo, mas procura ser conhecido abertamente. Se realizas tais coisas, manifesta-te ao mundo". E João acrescenta: "Porque mesmo seus irmãos não acreditavam nele". Também Marcos e Mateus: "E indo à sua própria terra, ensinava em suas sinagogas, tanto que [sua gente] ficava atônita e dizia: 'De onde tirou este homem tal sabedoria e miraculosas obras? Não é o filho do carpinteiro. Não é sua mãe chamada Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não moram conosco?' . Lucas, também, nos Atos dos Apóstolos relata: "Todos aqueles com um só propósito continuaram firmes na oração, com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e com seus irmãos".
Paulo, o Apóstolo, também uma vez esteve com eles, e testemunha sua precisão histórica: "E cresci pela revelação, mas não vi os outros apóstolos, a não ser Pedro e Tiago, o irmão do Senhor". E de novo, em outro lugar: "Não temos o direito de comer e beber? Não temos o direito de trabalhar com as viúvas, assim como o resto dos Apóstolos, os irmãos do Senhor e Pedro?"
E, por medo, ninguém aceitou o testemunho dos judeus, pois foi de sua boca que ouvimos o nome de Seus irmãos, mas mantivemos que seus conterrâneos ficaram decepcionados com esse mesmo erro a respeito dos irmãos pelo qual [os judeus] passaram a acreditar sobre o pai, Helvídio profere uma dura observação de advertência e grita: "Os mesmos nomes estão repetidos pelos Evangelistas em outro lugar e as mesmas pessoas são ali irmãos do Senhor e filhos de Maria".
Mateus diz: "E muitas mulheres estavam ali (sem dúvida ao pé da cruz do Senhor), observando de alguma distância, e elas tinham seguido Jesus desde a Galiléia, ajudando-o, entre as quais estava Maria Madalena, Maria a mãe de Tiago menor e de José, e Salomé"; e no mesmo lugar, logo depois: "E muitas outras mulheres que subiram com Ele a Jerusalém".
Lucas também diz: "Ali estavam Maria Madalena e Joana, e Maria, a mãe de Tiago, e as outras mulheres com elas".
CAPÍTULO XIV
Minha razão para repetir sempre a mesma coisa é para adverti-lo para não fazer uma falsa afirmação, divulgando que eu deixei de lado tais passagens, como propícias a você, e que essa interpretação foi desfigurada e desfeita não pela evidência da Escritura, mas por argumentos evasivos.
"Observe:" - diz ele - "Tiago e José são filhos de Maria, e são as mesmas pessoas que são chamadas irmãos pelos judeus. Note que Maria é a mãe de Tiago o menor e de José. E Tiago é chamado o menor para distingui-lo de Tiago o maior que era filho de Zebedeu, como Marcos afirma em outro lugar; E Maria Madalena e Maria a mãe de José estavam onde ele (=Jesus) fora colocado. E quando passou o Sábado, elas compraram essências para irem ungi-lo". E, como era de se esperar, ele diz: "Quão pobre e ímpia visão temos de Maria, se afirmamos que quando outras mulheres estavam ocupadas com o sepultamento de Jesus, ela, Sua mãe, estava ausente; ou se inventamos alguma outra Maria; e tudo o mais porque o Evangelho de São João testemunha que ela estava ali presente, quando o Senhor, do alto da cruz a recomendou como Sua mãe, agora uma viúva, aos cuidados de João. Ou deveríamos supor que o Evangelista caiu em tamanho erro e nos induziu a tamanho erro, chamando Maria a mãe daqueles que eram conhecidos dos judeus como irmãos de Jesus?"
CAPÍTULO XV
Que cegueira, que raivosa loucura o leva à sua própria destruição! Você (Helvídio) diz que a mãe do Senhor estava presente ao pé da cruz; diz que ela foi confiada ao discípulo João por causa de sua viuvez e condição de soledade, como se no ponto de vista de sua própria afirmação, ela não tivesse quatro filhos e numerosas irmãs, com o conforto dos quais ela poderia se apoiar? Você também lhe dá o nome de viúva, que não se encontra na Escritura. E embora cite, a cada momento, o Evangelho, somente as palavras de João lhe desagradam. Você diz, de passagem, que ela estava presente ao pé da cruz porque parece que você não a omitiu de propósito, e contudo [não diz] nenhuma palavra sobre as mulheres que estavam com ela. Poderia perdoá-lo se fosse ignorante, mas vejo que você tem uma razão para suas omissões.
Deixe-me destacar então o que João disse: "Mas estavam de pé junto à cruz de Jesus sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, a esposa de Cléofas, e Maria Madalena".
Não há nenhuma dúvida que existiam dois apóstolos chamados pelos nomes de Tiago: Tiago, o filho de Zebedeu, e Tiago, o filho de Alfeu. Por acaso você tem em vista que o comparativamente desconhecido Tiago o menor, que é chamado nas Escrituras filho de Maria, não contudo de Maria a mãe do Nosso Senhor, era apóstolo ou não ? Se era um apóstolo, devia ser o filho de Alfeu e um crente em Jesus, "porque nem seus irmãos acreditavam n'Ele". Se não era um apóstolo mas um terceiro Tiago (que possa ser, não sei), como poderia ser tido como o irmão do Senhor, e como, sendo um terceiro, poderia ser chamado "menor" para ser distinguido do "maior" , porquanto maior e menor são usados para mostrar relação existente não entre três, mas entre dois? Observe, ainda mais, que o irmão do Senhor é um apóstolo, uma vez que Paulo diz: "Então depois de três dias eu fui a Jerusalém para visitar Pedro e fiquei com ele quinze dias. Mas não vi nenhum outro dos apóstolos, a não ser Tiago, irmão do Senhor". E na mesma Epístola: "E quando eles perceberam a graça que me foi concedida, Tiago, Pedro e João que eram considerados os pilares" etc.
E você não poderá supor que esse Tiago fosse o filho de Zebedeu, bastando para isso ler os Atos dos Apóstolos, onde você encontrará que esse último já tinha sido trucidado por Herodes. A única conclusão é que a Maria que é descrita como a mãe de Tiago o menor era a esposa de Alfeu e irmã de Maria, a mãe do Senhor, aquela que é chamada por João Evangelista "Maria de Cléofas", seja por filiação, seja por parentesco, seja por outra razão.
Mas se você julga que são duas pessoas porque em outro lugar lemos: "Maria a mãe de Tiago menor" e aqui: "Maria de Cléofas", você terá a aprender ainda que era costume na Escritura dar diferentes nomes ao mesmo indivíduo. Raguel, sogro de Moisés, é chamado também de Jetro. Gedeão, sem nenhuma outra razão aparente para a troca, de repente se torna Jerubbaal. Ozias, rei de Judá, tem, como nome alternativo, Azarias. O Monte Tabor é chamado Itabyrium. Igualmente, o Hermon é chamado pelos fenícios Sanior, e pelos amorreus Sanir. O mesmo pedaço do país é conhecido por três nomes: Negebb, Teman e Darom, em Ezequiel. Pedro é também chamado Simão e Cefas. Judas, o zelote, em outro Evangelho é chamado Tadeu. Há numerosos outros exemplos que o leitor pode por si mesmo colecionar, em toda a Escritura.
CAPÍTULO XVI
Agora aqui temos a explicação do que eu me esforcei por mostrar, como foi que os filhos de Maria, a irmã da mãe de Nosso Senhor, que anteriormente eram tidos por não crentes, e que depois passaram a acreditar, podem ser chamados irmãos do Senhor. Possivelmente, o caso foi que um dos irmãos acreditou imediatamente enquanto os outros não acreditaram senão muito depois, e que uma Maria era a mãe de Tiago e José, chamada "Maria de Cléofas", que é a mesma dita esposa de Alfeu, e a outra, a mãe Tiago o menor. De qualquer modo, se ela (esta última) fosse a mãe do Senhor, São João teria lhe concedido seu sublime título, como em todos os demais lugares, e não teria passado uma impressão errônea, chamando-a mãe de outros filhos. Mas neste ponto não desejo argüir a favor ou contra a suposição de que Maria, a esposa de Cléofas, e Maria, a mãe de Tiago e José, eram mulheres diferentes, uma vez que está claramente entendido que Maria, a mãe de Tiago e José não era a mesma pessoa que a mãe do Senhor.
Como, então - pergunta Helvídio - explica você que eram chamados irmãos do Senhor aqueles que não eram seus irmãos?
Mostrarei como.
Na Sagrada Escritura há quatro espécies de irmãos: pela natureza, pela raça, pelo parentesco e pelo amor.
Exemplos de irmãos pela natureza foram Esaú e Jacó, os doze patriarcas, André e Pedro, Tiago e João.
Irmãos de raça, eram todos os judeus que assim se chamavam um ao outro, como no Deuteronômio: "Se teu irmão, um homem hebreu, ou uma mulher hebréia, te for vendida, ele servirá por seis anos; então, no sétimo ano, deixarás que ele se vá livre". E antes, no mesmo livro: "Deverás de qualquer maneira fazê-lo teu rei aquele que o Senhor teu Deus escolher: um dentre teus irmãos deverá ser feito teu rei; não porás um estrangeiro acima de ti, que não é teu irmão". E de novo: "Não deverás ver o boi ou a ovelha de teu irmão se extraviar e ficares omisso; deverás com segurança levá-los de novo para teu irmão. E se teu irmão não morar perto de ti, ou se não o conheces, então deves trazê-los para tua casa, e ficarão contigo até que teu irmão venha procurá-los, e tu deves devolvê-los a ele de volta". E o Apóstolo Paulo diz: "Desejaria eu mesmo ser reprovado por Cristo pela salvação de meus irmãos, meus próximos pela carne, que são os israelitas".
E ainda mais: são chamados irmãos por parentesco aqueles que são de uma família, que é pátrio, que corresponde à palavra latina "paternidade", porque de uma única raiz procede uma numerosa progênie. No Gênese, lemos: "E Abraão disse a Lot: 'Que não haja luta, eu te peço, entre mim e ti, e entre meus pastores e os teus, porque somos irmãos'". E de novo: "Assim Lot escolheu para si toda a planície do Jordão, e se direcionou para leste. E eles se separaram, um irmão do outro". Certamente Lot não era irmão de Abraão, mas o filho do irmão Aram de Abraão. Porque Terah gerou Abraão, Nahor e Arão. E Arão gerou Lot. De novo, lemos: "E Abraão tinha setenta e cinco anos quando partiu de Haram. E Abraão levou Sarai sua esposa, e Lot, filho de seu irmão".
Mas se você (Helvídio) ainda duvida que um sobrinho possa ser chamado filho, permita-me dar-lhe um outro exemplo: "E quando Abraão ouviu que seu irmão fora feito escravo, tomou seus experimentados homens, nascidos em sua casa, trezentos e dezoito". E depois de descrever o ataque e o massacre noturno ele acrescenta: "E trouxe de volta todos os bens, assim como seu irmão Lot". Que isso seja suficiente como prova de minha afirmação. Mas por medo, você pode levantar alguma objeção cavilosa, e se contorcer em seu aperto como uma cobra; assim devo imobilizá-lo rapidamente com as garantias de provas para fazê-lo parar de sibilar e murmurar, porque sei que você gostaria de dizer que está baseado não tanto na verdade da Escritura mas em complicados argumentos.
Jacó, o filho de Isaac e Rebeca, quando por medo da perfídia de seu irmão tinha ido para a Mesopotâmia, retirou-se para perto [de Labão], rolou a pedra da tampa do poço e bebeu da fonte de Labão, irmão de sua mãe. "E Jacó beijou Raquel, ergueu sua voz e chorou. E Jacó disse a Raquel que ele era irmão de seu pai, que era filho de Rebeca". Aqui está um exemplo da regra já referida, pela qual um sobrinho é chamado de irmão. E mais: "Labão disse a Jacó: 'Porque tu és meu irmão, poderias doravante trabalhar para mim sem pagamento? Diga-me qual o teu propósito'". E assim, quando ao fim de 12 anos, sem conhecimento de seu tio e acompanhado por suas esposas e filhos estava retornando para sua terra, quando Labão os alcançou na montanha de Gilead e não conseguiu encontrar os ídolos que Raquel escondera em sua bagagem, Jacó fez uma pergunta a Labão: "Qual é minha transgressão? Qual é meu pecado, para que tu me venhas tão irado e me persigas? Procuraste tudo em minhas bagagens! O que encontraste em todos meus utensílios? Digas aqui, irmãos perante irmãos, para que eles julguem a nós dois".
Diga-me [Helvídio] quem são esses irmãos de Jacó e Labão que estão aqui presentes? Esaú, irmão de Jacó, certamente não estava lá, e Labão, o filho de Bethuel, não tinha irmãos, embora tivesse uma irmã, Rebeca.
Inumeráveis exemplos da mesma espécie podem ser vistos nos Livros Sagrados.
CAPÍTULO XVII
Mas, para abreviar, volto à última das quatro espécies de irmãos, aqueles, esclareço, que são irmãos por afeição, e estes novamente são de duas espécies: aqueles por um relacionamento espiritual e aqueles por um relacionamento geral. Digo espiritual porque todos nós cristãos somos chamados irmãos, como no verso: "Veja como é bom e agradável para os irmãos viverem juntos na unidade". E em outro Salmo, o Salvador diz: "Eu enumerarei teu nome entre meus irmãos". E , em outro lugar: "Vá a meus irmãos e dize-lhes..."
Eu disse - por relacionamento geral - porque nós somos todos filhos de um mesmo Pai, há como um penhor de irmandade entre nós todos. "Dizei àqueles que vos odiarem:" - diz o profeta - "vós sois nossos irmãos". E o Apóstolo escrevendo aos Coríntios: "Se algum homem que é chamado irmão for um fornicador, ou avarento, ou idólatra, ou caluniador, ou beberrão, ou autor de extorsões, com alguém assim, não se deve comer".
Agora eu pergunto à que classe você considera que devem pertencer os irmãos do Senhor, no Evangelho. Eles são irmãos por natureza, você responde. Mas a Escritura não diz isso. Não os chama nem filhos de Maria, nem de José. Poderíamos dizer que eles eram irmãos pela raça? No entanto, seria absurdo supor que uns poucos judeus fossem chamados irmãos quando todos os judeus daquele tempo poderiam, a esse título, reivindicar o nome. Eram eles irmãos pela virtude de intimidade estreita e de união de coração e pensamento? Se eram assim, quais eram exatamente seus irmãos mais do que os apóstolos que receberam sua instrução privada e eram chamados por Ele Sua mãe e Seus irmãos? Novamente, se todos os homens, como visto, eram seus irmãos, seria loucura dar uma mensagem especial: "Vede, seus irmãos o procuram" porque todos os homens semelhantemente mereceriam esse nome.
A única alternativa é adotar a explicação anterior e considerar que são chamados irmãos em virtude do vínculo de parentesco, não de amor e simpatia, nem por prerrogativa de raça, nem pela natureza. Exatamente como Lot foi chamado irmão de Abraão, e Jacó, de Labão, exatamente como as filhas de Zelophehad receberam um lote entre seus irmãos, exatamente como o próprio Abraão tinha a esposa Sarai por sua irmã, porque ele diz: "Ela é de fato minha irmã, por lado de pai, não pelo lado da mãe" o que quer dizer, ela era filha de seu irmão e não de sua irmã. De outro modo, o que diremos de Abraão, um homem justo, falando que a esposa era filha de seu próprio pai?
A Escritura, relatando a história dos homens nos tempos primitivos, não ultraja nossos ouvidos falando da amplitude em termos expressos, mas prefere deixá-la ser inferida pelo leitor. Deus mais tarde aplicou a sanção de lei à proibição, estabelecendo: "Quem toma sua irmã, filha de seu pai, ou de sua mãe, e mostra sua nudez, comete abominação, deverá ser morto. Aquele que descobre a nudez de sua irmã, deverá pagar seu pecado".
CAPÍTULO XVIII
Há coisa que, em sua extrema ignorância, você nunca leu e, portanto, você negligenciou toda a imensidade da Escritura e usou sua maldade para ultrajar a Virgem, como o homem da história que sendo desconhecido de todo mundo e achando que poderia tramar um mau ato pelo qual ganhasse renome, incendiou o templo de Diana; e quando ninguém revelou o ato sacrílego, diz-se que ele próprio apareceu e se proclamou como aquele que nele pusera fogo. Os administradores de Éfeso ficaram curiosos em saber o que o levara a agir de tal modo, quando então ele respondeu que se não tinha fama por boas obras, todos poderiam lhe dar crédito por uma má. A história grega relata o incidente.
Mas você fez pior. Você pôs fogo no templo do corpo do Senhor, você aviltou o santuário do Espírito Santo, do qual se propôs a fazer gerar um grupo de quatro irmãos e uma porção de irmãs. Numa palavra, juntando-se ao coro dos judeus, você diz: "Não é este o filho do carpinteiro Não é sua mãe chamada Maria? E seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não moram todas conosco?". A palavra "todas" não seria usada se não houvesse um grande número delas. Rogo-te: diga-me quem, antes de você surgir, tinha conhecimento desta blasfêmia? Quem imaginou essa teoria digna de dois centavos? Você obteve seu propósito e se tornou notório por um crime. Pois eu mesmo que sou seu oponente, embora vivamos na mesma cidade, eu não o conheço como o autor disso, não sei se você é branco ou negro.
Omito as faltas de dicção que abundam em todos os livros que escreveu. Não digo nada sobre sua introdução absurda. Bons céus! Eu não procuro eloquência, embora você mesmo não a tenha; você contou para isso com a ajuda de seu irmão, Cratério. Eu não procuro graça e estilo, mas busco pureza de alma, porque entre cristãos é o maior dos solecismos e dos vícios de estilo fundamentar algo na palavra ou ação. Chego à conclusão de meu argumento. Concordarei com você em que eu não ganhei nada; e você se encontrará num dilema.
É claro que os irmãos de Nosso Senhor usaram o nome da mesma maneira como José era chamado seu pai: "Eu e teu pai te procurávamos preocupados"; foi Sua mãe que disse isso, não os judeus. O Evangelista relata que Seu pai e Sua mãe ficaram admirados com as coisas que se falavam a Seu respeito, e há uma passagem semelhante, que já citamos, na qual José e Maria são chamados Seus pais. Sabendo que você tem sido louco o bastante para se persuadir que os manuscritos gregos estão corrompidos, agora você talvez alegue a diversidade de interpretações.
Então procuro o Evangelho de João e ali está claramente escrito: "Filipe encontrou Natanael, e lhe disse, nós encontramos aquele de quem Moisés na lei, e os profetas escreveram, Jesus de Nazaré, o filho de José". Você encontrará certamente isso em seu manuscrito. Agora me diga: como Jesus é filho de José quando está claro que Ele fora gerado pelo Espírito Santo? Era José seu verdadeiro pai? Obtuso como você é, não se aventurará a dizer isso. Era seu suposto pai? Se era, que a mesma regra que você aplica a José, seja aplicada àqueles que eram chamados irmãos, assim como você chama José de pai.
O estado virginal é superior ao estado matrimonial
CAPÍTULO XIX
Agora que ultrapassei as pedras e encolhos, devo me por ao largo e ir a toda velocidade para chegar ao destino. Você, se sentindo uma pessoa sem conhecimentos, usou Tertuliano como sua testemunha e citou as palavras de Vitorino, bispo de Perávio. De Tertuliano não direi senão que não pertenceu à Igreja. Mas com respeito a Vitorino, afirmo que já ficou provado pelo Evangelho - que ele falou dos irmãos de Nosso Senhor não como sendo filhos de Maria, mas irmãos no sentido que expliquei, ou seja, irmãos sob o ponto de vista de parentesco, não de natureza.
Estamos, contudo, desperdiçando nosso percurso com ninharias e deixando a fonte da verdade, estamos seguindo insignificantes pontos de opinião. Não deveríamos arrolar contra você toda a série de escritores antigos? Inácio, Policarpo, Irineu, Justino Mártir e muitos outros homens apostólicos e eloqüentes, que expuseram as mesmas explicações contra Ebião, Theodoto de Bizâncio e Valentino, escreveram volumes repletos de conhecimentos. Se você alguma vez lesse o que eles escreveram, você se tornaria um homem sábio. Mas eu penso que é melhor refutar brevemente cada ponto do que prolongar meu livro por uma extensão indevida.
CAPÍTULO XX
Agora dirijo meu ataque contra a passagem na qual, desejando mostrar seu talento você faz uma comparação entre virgindade e casamento. Eu não poderia deixar de rir, e penso no provérbio: viu você alguma vez uma dança cautelosa?
Você pergunta: "São as virgens melhores do que Abraão, Isaac e Jacó, que foram casados? Não são as crianças diariamente moldadas pelas mãos de Deus no útero de suas mães? E se assim é, somos constrangidos a nos ruborizarmos pelo pensamento de Maria tendo um marido depois do parto? Se julgam que há alguma desgraça nisto, não deviam coerentemente acreditar que Deus nasceu da Virgem por parto normal. Porque de acordo com esses, há mais desonra numa virgem dando à luz a Deus pelos órgãos geradores, do que numa virgem que se juntou a seu próprio esposo depois que deu à luz".
Acrescente, se quiser, Helvídio, as outras humilhações da natureza, o útero de nove meses se tornando cada vez maior, a doença, o parto, o sangue, os cueiros. Imagine você mesmo o menino envolto na placenta. Imagine a dura manjedoura, o choro do menino, a circuncisão no oitavo dia, o tempo de purificação, de modo que possa ficar comprovado que tudo era impuro. Não enrubescemos, você não nos impõe silêncio. Maior humilhação Ele sofreu por mim, a maior que o atingiu. E quando você tiver dado todos os detalhes, não estará apto a apontar nada mais vergonhoso do que a cruz que confessamos, na qual acreditamos e pela qual triunfamos sobre todos nossos inimigos.
CAPÍTULO XXI
Mas como não negamos o que está escrito, assim também rejeitamos o que não está escrito. Acreditamos que Deus nasceu de uma Virgem, porque lemos assim. Não acreditamos que Maria teve união marital depois que deu à luz porque não lemos isso. Nem afirmamos tal para condenar o casamento, porque a virgindade é o fruto do casamento; mas porque quando estamos tratando de santos não devemos julgar apressadamente. Pois se adotássemos a possibilidade como padrão de julgamento, poderíamos sustentar que José teve várias esposas porque Abraão teve, e também Jacó, e que aqueles que eram irmãos do Senhor nasceram daquelas esposas, uma criação imaginária que alguns sustentam com uma temeridade que nasce da audácia e da piedade.
Você diz que Maria não continuou virgem. Eu brado ainda mais que José, ele mesmo, aceitou que Maria era virgem, de modo que de um casamento virgem nasceu um filho virgem. Porque se, como um homem santo, ele não se apresentou com a acusação de fornicação, e está escrito que ele não teve outra esposa, mas foi o guardião de Maria, aquela que foi tida por sua esposa mas não ele por seu marido; a conclusão é que aquele que foi julgado digno de ser chamado pai do Senhor, permaneceu casto.
CAPÍTULO XXII
E agora que vou fazer uma comparação entre virgindade e casamento, rogo a meus leitores para não suporem que louvando a virgindade, tenho em menor grau o casamento, e discrimino os santos do Antigo Testamento com relação àqueles do Novo, isto é, aqueles que tinham esposas daqueles que se mantiveram livres dos laços de mulheres; antes, penso que de acordo com a diferença de tempo e circunstâncias, uma regra foi aplicada aos primeiros, uma outra a nós, sobre quem sobrevirá o fim do mundo.
Tanto que continua vigorando a lei : "Sede férteis e multiplicai-vos e povoai a terra"; e: "Amaldiçoada é a mulher estéril que não gerou semente em Israel"; elas todas que casaram e foram dadas em matrimônio, deixaram pai e mãe, e se tornaram uma só carne.
Mas de repente com a força do trovão se fizeram ouvir essas palavras: "O tempo está se acabando, em que doravante aqueles que têm esposas sejam como se não tivessem"; aderindo ao Senhor, nós somos feitos um espírito com Ele. E por quê?
Porque "aquele que é solteiro está preocupado com as coisas do Senhor, de modo que poderá agradar ao Senhor; mas aquele que é casado está preocupado com as coisas do mundo, do modo como agradará a sua esposa. E aqui está a diferença também entre a esposa e a virgem. Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, porque será santa tanto no corpo como no espírito; mas aquela que é casada, está preocupada com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido".
Por que você sofisma? Por que resiste? O vaso de eleição disse isso. Disse-nos que há uma diferença entre a esposa e a virgem. Observe qual deva ser a felicidade daquele estado no qual mesmo a distinção de sexo desaparece. A virgem não é mais chamada mulher. "Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, de modo que é santa no corpo e no espírito".
A virgem é definida como aquela que é santa no corpo e no espírito, porque não é bom ter uma carne virgem se a mulher se põe casada no espírito. "Mas aquela que é casada está preocupada com as coisas do mundo, do modo como agradará a seu marido". Julga você que não há diferença entre uma que gasta seu tempo em oração e jejuns daquela que se sente impelida, ao aproximar-se seu marido, a arranjar sua aparência, andar com passos afetados, e demonstrar atos de carinho?
O objetivo da virgem é aparecer menos faceira; ela quer se guardar de modo a esconder suas atrações naturais. A mulher casada tem seu pincel preparado ante seu espelho, e em desacordo com seu Criador, esforça-se para adquirir algo mais do que sua beleza natural. Então lhe chegam as conversas de seus filhos, o barulho da casa, as crianças buscando sua palavra e pedindo seus beijos, a lista das despesas, o cuidado para acertar as despesas. De um lado você a vê na companhia dos cozidos, cercada de gritos e preparando o alimento; você ali ouve o barulho de uma multidão de fiandeiras. Enquanto isso, chega uma mensagem que o marido e seus amigos estão chegando. A esposa, como uma andorinha, voa por toda a casa. Ela deve cuidar de todas as coisas. Está o sofá arrumado? Está o piso varrido? Estão as flores nas jarras? E o jantar está pronto?
Diga-me, rogo-lhe, onde entre tudo isso há lugar para pensar em Deus? São essas casas tranqüilas? Onde há as batidas do tambor, o barulho e a algazarra do órgão e do alaúde, o tinir dos címbalos, pode se encontrar alguma preocupação com o temor de Deus? O parasita é repreendido e se sente orgulhoso da honra. Entram depois as vítimas meio despreparadas para as paixões, uma referência para todo olhar lúbrico. A infeliz esposa ou deve achar prazer neles e perecer, ou ficar desgostosa e provocar seu marido. Disso surge a discórdia, a semente conspiratória do divórcio.
Ou suponha que você encontre uma casa onde essas coisas são desconhecidas, o que acontece em pequena proporção! Contudo, mesmo ali, o desempenho do dono da casa, a educação das crianças, as necessidades do marido, a correção dos servos, não falham em afastar a mente do pensamento de Deus. "Deixou de ficar com Sara como se fica com as mulheres" - assim diz a Escritura, e mais tarde Abraão recebeu a ordem: "Presta atenção em tudo o que Sara te disser". [Porque] ela não está tomada de ansiedades e dor de parto e, tendo passado pela mudança de vida [sexual], deixou de exercer as funções de uma mulher, estando liberta do esquecimento de Deus; não tem desejo por seu marido, mas, pelo contrário, seu marido se torna sujeita a ela, e a voz do Senhor lhe ordena: "Presta atenção em tudo o que Sara te disser". Então, começam a ter tempo para rezar. Porque enquanto demorou a ser pago o dever do matrimônio, a determinação de rezar foi negligenciada.
CAPÍTULO XXIII
Não nego que se encontram mulheres santas entre as viúvas e aquelas que têm marido; mas se tornam santas logo que deixam de ser esposas, ou se no estrito dever do matrimônio imitam a castidade virginal. O Apóstolo, como se Cristo falasse por sua boca, brevemente deu testemunha disso quando disse: "Aquela que é solteira está preocupada com as coisas do Senhor, como poderá agradar ao Senhor; mas aquela que é casada está preocupada com as coisas do mundo, como poderá agradar a seu marido".
Ele nos deixa ao livre exercício de nossa razão a esse respeito. Não determina obrigação a ninguém nem induz alguém em cilada; somente persuade àquilo que é próprio quando deseja que todos os homens sejam como ele mesmo. Não emitiu, é verdade, um mandamento do Senhor a favor da virgindade, porque essa graça sobrepuja o poder do homem desassistido, e seria usar um ar de imodéstia forçar os homens a se porem a voar em face de sua natureza, e dizer em outras palavras: "Quero que você seja como são os anjos do céu". É essa angélica pureza que assegura à virgindade a mais alta recompensa, e o Apóstolo poderia parecer desprezar um sistema de vida que não é culposo.
Não obstante, no contexto a seguir diz: "Mas presto meu julgamento como alguém que obteve misericórdia do Senhor para ficar fiel. Penso, portanto, que isso é bom em razão da atual aflição, ou seja, que é bom para um homem ser como ele é". O que quer dizer com "a atual aflição"?
"Haverá aflição para aqueles que tiverem crianças e para aquelas que amamentarem naqueles dias!" A razão por que a madeira cresce é que poderá ser cortada. O campo é semeado porque poderá ser segado. O mundo está já repleto, e a população está demasiado grande para a terra. A cada dia somos dizimados pela guerra, levados pelas doenças, tragados pelos naufrágios, embora continuemos a levar alguém a juízo por causa dos muros de nossa propriedade.
É somente uma adição à regra geral que é feita por aqueles que seguem o Cordeiro, e que não desvestiram seus ornamentos, que continuam em seu estado de virgindade. Preste atenção ao significado de desvestir. Eu não me aventuro a explicá-lo, por medo de que Helvídio possa se tornar abusivo.
Concordo com você, quando diz que algumas virgens não são senão mulheres de taverna; digo ainda mais, que mesmo o pecado do adultério pode ser encontrado entre elas, e você ficará sem dúvida mais surpreso de ouvir que alguns do clero são taberneiros e alguns monges não são castos. Quem não entende logo que uma mulher de taverna não persistirá virgem, nem adúltero um monge, nem taberneiro um clérigo? Exigiremos virgindade se a virgindade corrompida é um pecado?
De minha parte, me omitindo das outras pessoas, e tratando dos castos, afirmo que aquela que trabalha como vendeira, embora sem provas, poderá ser virgem no corpo, porém não mais será casta em espírito.
Conclusão

CAPÍTULO XXIV
Eu me tornei retórico e agi um pouco como orador de plataforma. A isso me levou você, Helvídio; porque, da forma lúcida como brilha o Evangelho atualmente, você quer que se dê uma glória igual à virgindade e ao estado matrimonial. E porque penso que, sentindo a verdade muito forte, você virá aviltar minha vida e abusar de meu caráter (este é o modo das mulheres fracas cochicharem nos cantos quando são repreendidas por seus senhores), vou me antecipando a você:
- Asseguro que darei atenção às suas injúrias como a uma elevada distinção, uma vez que os mesmos lábios que me atacam aviltaram Maria, e eu - um servo do Senhor - sou favorecido com a mesma brava eloqüência de Sua mãe.
Tradução: José Fernandes Vidal
e Carlos Martins Nabeto
Site: Veritatis

quinta-feira, março 19, 2015

AS QUATORZE REGRAS PARA SOFRER À MANEIRA DE JESUS CRISTO


Não é, porém, suficiente sofrer: o demônio e o mundo tem, seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz nas pegadas de Jesus Cristo: - sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira que Ele a carregou. E eis, para isto, as regras que deveis seguir:
Não procurar cruzes propositadamente ou pela própria culpa.
1º: Não procureis cruzes propositadamente ou por vossa culpa; não se deve fazer o mal para que dele resulte um bem (90); não se deve, sem inspiração especial, fazer as coisas de maneira má, para atrair sobre si mesmo o desprezo dos homens. É antes preciso imitar Jesus Cristo, de quem se disse fez bem todas as coisas (91), não por amor próprio ou por vaidade, mas para agradar a Deus e conquistar a alma do próximo. E se executardes os vossos trabalhos o melhor que puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem desprezos, que a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos consultar.
Consultar o bem do próximo.
2º: Se praticais algum ato indiferente, mas do qual o próximo se escandaliza, ainda que fora de propósito, abstende-vos dele, por caridade, para que cesse o escândalo dos pequenos; o ato heróico de caridade que praticardes nessa ocasião vale infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou pretendíeis fazer.
Se, entretanto, o bem que fazeis é necessário ou útil ao próximo, e escandalizar, sem razão, algum fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa prudente, para saber se o que fazeis é necessário e muito útil ao bem do próximo; e, se ela assim o julgar, continuai e deixai falar, contanto que vos deixem agir, e respondei, em tais ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a alguns de seus discípulos que vieram dizer-lhe que os Fariseus se haviam escandalizado com as suas palavras e ações: “Deixai-os falar. São cegos”. (92).
Admirar, sem pretender atingí-la, a sublime virtude dos santos.
3º: Apesar de alguns santos e pessoas importantes terem pedido, procurado e, por meio de ações ridículas, atraído sobre si mesmos, cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e admiremos apenas a ação do Espírito Santo sobre suas almas e humilhemo-nos diante de tão sublime virtude, sem ousar voar tão alto, um vez que, comparados a essas rápidas águias e rugidores leões, não passamos de criaturas sem coragem e sem força de vontade. (93)
Pedir a Deus a sabedoria da Cruz.
4º: Podeis, entretanto, e mesmo o deveis, pedir a sabedoria da cruz, que é uma ciência saborosa e experimental da verdade, que nos faz ver, à luz da fé, os mais ocultos mistérios, entre os quais o da cruz, e isto só se obtem mediante grandes trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se precisardes do espírito principal (94), que nos faz levar corajosamente as mais pesadas cruzes; do espírito bom (95) e manso, que nos faz saborear, na parte superior da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto (96), que procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da amizade de Deus (97), pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem hesitar (98), sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível desejar, procurar e saborear a cruz.
Humilhar-se das próprias faltas, sem se perturbar.
5º: Quando, por ignorância ou mesmo por vossa culpa, cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma cruz, humilhai-vos imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de Deus (99), sem vos perturbar voluntariamente, dizendo: “Eis, Senhor, uma peça que me pregou meu ofício”! E se houver pecado na falta que cometestes, aceitai a humilhação de vosso orgulho. Algumas vezes, e até muitas veses, Deus permite que seus maiores servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais humilhantes, a fim de humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos homens, a fim de tirar-lhes a vista e o pensamento orgulhoso das graças que lhes dá e do bem que fazem, a fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo, nenhuma carne se glorifique diante de Deus (100).
Deus nos humilha para purificar-nos
6º: Ficai bem persuadidos de que tudo o que existe em nós está inteiramente corrompido (101) pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais; e não apenas os sentidos do corpo, mas todas as potências da alma; e que, logo que o nosso espírito corrompido olha, refletida e complacentemente, algum dom de Deus em nós, esse dom, ação ou graça fica todo poluído e corrompido e Deus dele desvia os seus olhos divinos. Se os olhares e os pensamentos do espírito do homem estragam assim as melhores ações e os mais divinos dons, que diremos dos atos da própria vontade, que são ainda mais corrompidos que os do espírito? (102)
Não é de espantar, depois disto, que Deus sinta prazer em esconder os seus no segredo de sua face (103), para que não sejam manchados pelos olhares dos homens e pelos seus próprios conhecimentos. E, para escondê-los assim, o que não faz e não permite este Deus ciumento?! Quantas humilhações lhes proporciona!
Em quantas faltas os deixa cair! De que tentações permite sejam atacados, como S. Paulo! (104) Em que incertezas, trevas e perplexidade os deixa! Ah! como Deus é admirável nos seus santos e nos caminho pelos quais os conduz à humildade e à santidade!
Evitar nas cruzes, o perigo do orgulho.
7º: Procurai bem, portanto, evitar crer, como os devotos orgulhosos e cheios de si, que vossas cruzes são grandes, que são provas de vossa fidelidade e testemunhas de um singular amor de Deus para convosco. Esta armadilha do orgulho espiritual é muito sutil e delicada, mas cheia de veneno. Deveis crer: 1) que vosso orgulho e moleza vos levam a considerar palhas como se fossem traves; picadas como se fossem chagas, um rato como se fosse um elefante; e uma palavrinha no ar, - um nada, na verdade, - como se fosse uma injúria atroz e um cruel abandono; 2) que as cruzes que Deus vos envia são antes castigos amorosos de vossos pecados, - e de fato o são, - que sinais de especial benevolência; 3) que, seja qual for a cruz que Ele vos enviar, ainda assim vos poupa infinitamente, em virtude do número e da enormidade dos vossos crimes, que só deveis considerar à luz da santidade de Deus, que nada de impuro tolera e que atacastes; à luz de um Deus moribundo e aniquilado de dor, por causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim, que merecestes mil vezes e talvez cem mil; 4) que na paciência com que sofreis há muito mais de humano e natural do que o julgais: provam-no as pequenas mitigações; as procuras secretas de consolação; as aberturas de coração, - tão naturais, - a vossos amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas e prontas; as queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão caridosamente expressas, contra os que vos fizeram algum mal; as referências e complacências delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois algo de grande (105), etc. Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as voltas e reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.
Tirar maior proveito dos pequenos sofrimentos que dos grandes.
8º: Tirai proveito dos pequenos sofrimentos e mesmo mais que dos grandes. Deus não olha tanto o sofrimento quanto a maneira por que se sofre. Sofrer muito e mal é sofrer como condenado; sofrer muito e corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como mártir do demônio; sofrer pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como santo.
Se é verdade que se pode escolher as cruzes, isto é mais certo quanto às cruzes pequenas e escondidas quando nos vêm paralelamente às grandes e visíveis (106). O orgulho da natureza pode pedir, procurar e mesmo escolher e abraçar as cruzes grandes e visíveis; mas escolher e levar bem alegremente as cruzes pequenas e ocultas só pode ser o efeito de uma grande graça e de uma grande fidelidade a Deus. Fazei, pois, como o comerciante com o seu negócio: tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se a mínima parcela da verdadeira Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de alfinete, a indelicadeza de um vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um níquel, uma perturbaçãozinha da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha num dos membros, etc. Tirai proveito de tudo, como o merceeiro em sua mercearia, e, assim como ele enriquece em dinheiro, juntando moeda por moeda em seu cofre, breve estareis ricos em Deus. Ao menor contratempo que sobrevier, dizei: “Deus seja bendito! - (107) Meu Deus, eu Vos agradeço”, depois escondei na memória de Deus, que é vosso cofre, a cruz que acabais de ganhar, e só vos lembreis dela para dizer: Obrigado! ou Misericórdia!
Amar a cruz, não com amor sensível, mas racional e sobrenatural.
9º: Quando vos dizemos para amar a cruz, não falamos em amor sensível, que é impossível à natureza. Distingui bem, portanto, estes três amores: o amor sensível, o amor racional, o amor fiel e supremo; ou, em outras palavras: o amor da parte inferior, que é a carne; o amor da parte superior, que é a razão; e o amor da parte suprema, ou cimo da alma, que é a inteligência esclarecida pela fé.
Deus não vos pede que ameis a cruz com a vontade da carne. Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa, tudo o que dela se origina é corrompido e ela não pode, por si mesma, estar sujeita à vontade de Deus e à sua lei crucificadora. Eis por que, ao falar dela no Horto da Oliveiras, Nosso Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” (108) Se a parte inferior do homem em Jesus Cristo, ainda que santa, não pôde amar a cruz sem desfalecimento, com mais forte razão a nossa, que é toda corrompida, há de a repelir. Podemos, é verdade, experimentar, por vezes, até mesmo alegria sensível pelo que sofremos, como aconteceu a vários santos; mas essa alegria não vem da carne, ainda que nela esteja; vem apenas da parte superior, que se acha tão cheia da divina alegria do Espírito Santo, que a faz estender-se até à parte inferior, de tal sorte que em tal ocasião até mesmo a pessoa mais crucificada pode dizer: Meu coração e minha carne estremeceram de alegria no Deus vivo! (109)
Há outra espécie de amor, que denomino racional, e que se acha na parte superior, que é a razão. Este amor é todo espiritual e, como nasce do conhecimento da felicidade de sofrer por Deus, é perceptível e mesmo percebido pela alma, rejubilando-a interiormente e fortificando-a. Este amor racional e percebido, porém, -apesar de bom, e de muito bom, - nem sempre é necessário para que se sofra alegre e divinamente.
É porque há outro amor, do cimo ou ápice da alma, dizem os mestres da vida espiritual, - ou da inteligência, afirmam os filósofos, - pelo qual, sem experimentar qualquer alegria dos sentidos, sem perceber nenhum prazer racional na alma, é possível amar e saborear, pela visão da fé pura, a cruz que carregamos, muito embora tudo esteja em guerra e estado de alarme na parte inferior, que geme, se queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que se possa dizer, como Jesus Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” ou, com a Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a Vossa palavra!” É com um desses dois amores da parte seperior que devemos amar e aceitar a cruz.
Sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha.
10º: Decidi-vos, queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda humilhação, toda contradição, toda calúnia, toda aridez, todo abandono, toda pena interior ou exterior, dizendo sempre: Meu coração está preparado, meu Deus, meu coração está preparado (110). Preparai-vos, pois, para ser abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo próprio Deus; para ser perseguidos, invejados, traídos, cluniados, desacreditados e abandonados por todos; para sofrer fome, sêde, mendicidade, nudez, exílio, prisão, tortura e todos os suplícios, ainda que não os tenhais merecido pelos crimes que vos impuserem (111). Imaginai enfim que, depois de ter perdido vossos bens e vossa honra, de haver sido lançados para fora de vossa casa, como Jó e Santa Isabel, rainha da Hungria, vos joguem na lama, como àquela santa, e vos arrastem por sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e coberto de úlceras, sem vos darem ataduras para vossas chagas ou, para comerdes, um pedaço de pão que não recusariam a um cavalo ou a um cão; e que, além desses males extremos, Deus vos deixe à mercê de todas as tentações dos demônios, sem derramar sobre vossa alma a mínima consolação sensível.
Crêde firmemente que esse é o ponto supremo da glória divina e a felicidade perfeita de um verdadeiro e perfeito Amigo da Cruz (112).
Os quatro estimulantes do bom sofrimento.
11º: Para ajudar-vos a sofrer bem, tomai o santo hábito de olhar quatro coisas:
1º) O olhar de Deus
Primeiramente o olhar de Deus, que, como um grande rei, do alto de uma torre, olha complacentemente e louvando-lhe a coragem, o seu soldado que peleja.
Que olhará Deus na terra? Os reis e imperadores em seus tronos? Muitas vezes Ele os contempla com desprezo. As grandes vitórias dos exércitos do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra: as coisas que são grandes aos olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos homens é abominação diante de Deus (113) Que olhará Ele então com prazer e complacência e de que pedirá notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um homem que, por Deus, se bate com a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um homem que carrega alegremente a sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha que todo o céu contempla com admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste meu servo Jó”(114), que sofre por mim?
2º) A mão de Deus
Em segundo lugar, considerai a mão deste poderoso Senhor, que permite todo o mal que da natureza nos advém, desde o maior até o menor; a mão que colocou um exército de cem mil homens no campo de batalha (115) e faz cair as folhas das árvores e os cabelos de vossa cabeça (116); a mão que, havendo rudemente atingido Jó, vos toca docemente pelo pouco sofrimento que vos envia. Com essa mão Ele formou o dia e a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal; permitiu os pecados que se cometem e que vos melindram; não lhes fez a malícia, porém lhes permitiu a ação.
Assim, quando virdes um Sémei injuriar-vos e apedrejar-vos, como ao rei Davi, (117) dizei a vós mesmos: “Não nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que mereci toda sorte de utrajes e é justo que Deus me castigue. Parai, braços meus: Parai, língua minha. Não ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher me injuriam por palavras ou por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de sua misericórdia, para exercer vingança amistosa. Não irritemos sua justiça usurpando os direitos de sua vingança; não desprezemos a sua misericórdia resistindo às suas amorosas chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à pura justiça da eternidade.”
Olhai uma das mãos de Deus, que, onipotente e infinitamente prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos atinge; com uma das mãos Ele mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e exalta, e, com seus dois braços, doce e fortemente, alcança, de um polo ao outro, a vossa vida (118); docemente, não permitindo que sejais tentados e provocados acima de vossas forças: - fortemente, secundando-vos com graça poderosa e correspondente à violência e duração da tentação e da aflição; fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele próprio, segundo o diz pelo espírito de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda do precipício perto do qual vos encontrais, vosso companheiro no caminho onde vos perdeis, vossa sombra no calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva que vos molha e no frio que vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos aniquila, vosso socorro na adversidade que vos visita, vosso bastão nos caminhos escorregadios e vosso porto no meio das tempestades que vos ameaçam de ruína e naufrágio”(119).
3º) As chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado
Em terceiro lugar, olhai as chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado. Ele mesmo vô-lo diz: “Ó vós que passais pelo caminho espinhoso e crucificado por que passei, olhai e vêde: olhai com os próprios olhos do vosso corpo e vêde, com os olhos de vossa contemplação, se vossa pobreza, vossa nudez, vosso desprezo, vossas dores, vossos abandonos são semelhantes aos meus; olhai-me, a mim que sou inocente, e queixai-vos, vós que sois culpados!” (120).
O Espírito Santo nos ordena, pela boca dos Apóstolos, esta mesma contemplação de Jesus Crucificado (121); ordena que nos armemos com este pensamento(122) mais penetrante e terrível para todos os nossos inimigos que todas as outras armas. Quando fordes atacados pela pobreza, pela abjeção, pela dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um escudo, uma couraça, um capacete e uma espada de dois gumes (123), a saber: o pensamento de Jesus Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória sobre qualquer inimigo.
4º) Ao alto, o céu; em baixo o inferno.
Em quarto lugar olhai, ao alto, a bela coroa que vos espera no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi esta recompensa que sustentou os patriarcas e os profetas em sua fé e nas perseguições; que animou os Apóstolos e os Mártires em seus trabalhos e tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas, com Moisés - sofrer aflições com o povo de Deus, para ser feliz com Ele eternamente, que gozar de um prazer criminoso por um só momento (124). Sofremos grandes perseguições por causa da recompensa (125), diziam os profetas com Davi.
Somos como vítimas destinadas à morte, como espetáculo para o mundo, os anjos e os homens pelos nossos sofrimentos, como a escória e o anátema do mundo (126), diziam os Apóstolos e os Mártires com São Paulo, por causa do peso imenso da Glória eterna que este momento de breve sofrimento produz em nós (127).
Olhemos sobre nossas cabeças os anjos que nos dizem, em alta vos: “Tende cuidado para não perderdes a coroa marcada pela cruz que vos é dada, se a levardes bem. Se não a carregardes bem, outro o fará e vos arrebatará vossa coroa (128). Combatei fortemente, sofrendo com paciência, dizem-nos todos os santos, e entrareis no reino eterno (129)”. Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos diz: “Só darei minha recompensa àquele que sofrer e vencer pela paciência (130)”.
Olhamos embaixo o lugar que merecemos e que nos espera no inferno com o mau ladrão e os réprobos, se, como eles, sofremos com murmurações, despeito e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai, talhai e retalhai neste mundo para castigar meus pecados, contanto que os perdoeis na eternidade”!
Nunca se queixar da criaturas.
12º: Nunca vos queixeis voluntariamente e entre murmurações, das criaturas de que Deus se serve para vos aflingir. Distingui, para tanto, três espécies de queixas nos sofrimentos.
- A primeira é involuntária e natural: é a do corpo que geme, suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando a alma, como já disse, está resignada com a vontade de Deus, em sua parte superior, não há nenhum pecado.
- A segunda é razoável; é quando alguém se queixa e descobre seu mal aos que podem e devem tratá-lo, como um superior ou o médico. Esta queixa pode ser imperfeita, quando for muito insistente; mas não é pecado.
- A terceira é criminosa: é quando alguém se queixa do próximo para se isentar do mal que ele nos faz sofrer, ou para se vingar; ou quando alguém se queixa da dor que sofre, consetindo nessa queixa e juntado a ela a impaciência e a murmuração.
Receber sempre a cruz com reconhecimento.
13º: Nunca recebais nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e com reconhecimento; e quando Deus, todo bondade, vos houver favorecido com alguma cruz um pouco considerável, agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o agradecer por outros, a exemplo daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos os seus bens em virtude de um processo injusto que lhe moveram, fez celebrar imediatamente uma Missa, com o dinheiro que lhe restava, a fim de agradecer a Deus a ventura que lhe era concedida (131).
Carregar suas cruzes voluntárias.
14º: Se quereis tornar-vos dignos de receber as cruzes que vos hão de vir sem vossa participação e que são as melhores, carregai outras voluntárias, seguindo os conselhos de um bom diretor.
Por exemplo: Tendes em casa algum móvel inútil pelo qual tendes afeição? Dai-o aos pobres, dizendo: quererias o supérfluo quando Jesus é tão pobre?
Tendes horror a algum alimento? A algum ato de virtude? A algum mau odor? Provai-o, praticai-o, aspirai-o. Vencei-vos.
Amais alguém ou algum objeto um pouco terna e insistentemente demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos do que vos lisonjeia.
Tendes uma natureza muito inclinada a ver? A agir? A aparecer? A ir a algum lugar? Parai, calai, escondei-vos, desviai os olhos.
Odiais naturalmente algum objeto? Alguma pessoa? Procurai-a frequentemente. Dominai-vos.
Se sois verdadeiramente Amigos da Cruz, o amor, que é sempre industrioso, vos fará assim encotrar mil pequenas cruzes, com que vos enriqueceis insensívelmente, sem temor da vaidade, que se mistura tão frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes muito visíveis; e porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos estabelecerá em muito (132), como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos enviará, em muita glória que vos preparará (133) ...
________________________________________
Extraído de "Carta Circular aos Amigos da Cruz" - São Luis Maria G. de Montfort.
___________________________________
Notas:
(90) Axioma bem conhecido dos antigos, aos quais se refere S. Paulo (Rom., 3, 8).
(91) Marc., 7, 37.
(92) Mat., 15, 14.
(93) (No original: “... des poules mouilées et des chiens morts”).
(94) Sl., 50, 14.
(95) Lc., 11, 13.
(96) Sl., 50, 12.
(97) Sab., 7, 14.
(98) Toda esta alínea é um comentário sobre Tg., 5-6.
(99) I Pd., 5, 6.
(100) I cor., 1, 29.
(101) Num trecho paralelo do “Tratado da verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”, Montfort atenuou esta declaração, acrescentando posteriormente esta útil correção: “O pecado de nosso primeiro pai nos deixou a todos quase inteiramente...corrompidos.”
(102) O santo autor desmascara aqui o amor-próprio “que se insinua insensívelmente nas melhores ações” (V. D., nº 146).
(103) Sl., 30, 21.
(104) II Cor., 12, 7.
(105) Cf. At., 8,9.
(106) Isto é: aquelas, dentre as cruzes, que são pequenas e obscuras, se comparadas com as grandes e muito visíveis.
(107) Montfort compôs sobre este tema um belo cântico de vinte e duas estrofes, intitulado “O pobre de espírito”. Os 2º e 4º versos de cada estrofe são, invariavelmente: “Deus seja bendito! Deus seja bendito!” (Cânticos: 19º Tradicional).
(108) Lc., 22, 42.
(109) Sl., 83, 3.
(110) Sl., 107, 2;l Sl., 56, 8.
(111) Isto é, que vos “imputarem”.
(112) Nestas linhas sublimes, em que transparece a santa loucura da Cruz, não julgaríamos estar a ouvir São Francisco de Assis dizendo ao Irmão Leão, diante do quadro dos piores desprezados: “Aí está a perfeita alegria”?
(113) Lc., 16, 15.
(114) Jó., 2, 3.
(115) Montfort, sem dúvida, faz aqui alusão ao extermínio do exército de Senaquerib por um Anjo do Eterno, que dizimou, numa noite, cento e oitenta e cinco mil homens. (IV Reis, 19, 35).
(116) Lc., 21, 18.
(117) II Reis, 16, 5-11.
(118) Sab., 8, 1.
(119) Cf. Itinerário dos clérigos.
(120) Parafr. de Jeremias: Lament., I, 12.
(121) Gal., 3, 1.
(122) I Ped., 4, 1.
(123) Ver. Efes., 6, 12-18.
(124) Heb., 11, 25-26.
(125) Ps., 68, 8; 118, 112.
(126) I Cor., 4, 9 e 13.
(127) Cf. II Cor., 4, 17.
(128) Alusão à defecção do 40º mártir de Sebaste.
(129) Escritura e Liturgia, passim.
(130) Cf. Apoc., 2, 6, 11, 17, 26; 3, 5, 12, 21; 21, 7.
(131) Cf. Boudon: “Les sainctes voyes de la croix”, liv IV, cap. VI.
(132) Mat., 21, 21 e 23.
(133) Será este o fim da “Carta”? Decerto poderia esta terminar com este pensamento. O Padre Quérard, historiador de Montfort (1887), entretanto, lamenta que a conclusão dela se haja perdido. Na ausência do manuscrito, é difícil resolver a questão.

QUE É A EXCOMUNHÃO?





DIREITO CANÓNICO
SEBASTIÃO (Belo Horizonte): «Diante das recentes notícias de excomunhão proferidas sobre este ou aquele homem público, gostaria de saber em que consiste essa pena e quais os seus efeitos».

1. A excomunhão é, sumariamente, a pena pela qual um cristão é excluído da comunhão (ou da união de vida) dos demais fiéis (ou da Igreja); cf. Código de Direito Canônico, cân. 2257 § 1.

A palavra «excomunhão» tinha, nos primeiros séculos do Cristianismo, sentido assaz vago, podendo designar qualquer modalidade de pena eclesiástica. Foi no séc. XIII que o Papa Inocêncio III lhe deu a acepção que ela hoje possui no Direito da Igreja.

Dado o significado geral do termo «excomunhão», compreende-se que tivesse outrora vários sinônimos, como «anátema, maldição, execração».

O vocábulo grego «anathema» designava originariamente uma oferenda feita à Divindade, oferenda suspensa ou exposta no templo e sequestrada ao uso profano. Já que muitas vezes tais oferendas eram os despojos de inimigos vencidos na guerra, o anátema ficou sendo um objeto execrado ou tido como imundo, intangível aos homens puros. Na linguagem cristã, o anatematismo ou simplesmente o anátema tomou aos poucos o sentido que hoje lhe compete: é uma excomunhão, como declara o cân. 2257 § 2. ... mas excomunhão geralmente infligida em circunstâncias mais solenes, ou seja, em meio a ritos destinados a incutir mais sensivelmente o horror da pena.

Com efeito, o «Pontifical Romano», no tocante ao anátema, prescreve que o bispo, revestido de capa roxa e mitra simples, se sente em uma poltrona, tendo em torno de si doze presbíteros trajados de sobrepeliz e portadores de velas acesas. O Prelado pronuncia então palavras extremamente severas que excluem o réu da comunhão dos fiéis; a seguir, os assistentes atiram ao chão as suas velas. O ato é levado por carta ao conhecimento dos demais sacerdotes diocesanos e dos bispos vizinhos. - - Tal cerimônia caiu em desuso nos nossos dias.

Quando, pois, uma definição do Sumo Pontífice ou de um Concilio profere anátema (o que ainda hoje acontece), entenda-se “excomunhão” no sentido que será descrito no presente artigo. A expressão “anathema perpetuum” (ou “an. maranatha”, até que venha o Senhor...), outrora ocorrente em documentos eclesiásticos, era, por vezes nos primeiros séculos, interpretada como condenação ao inferno, onde o anatematizado seria companheiro de Judas, o traidor. Contudo o Papa Gelásio I, em 495 aproximadamente, declarou que o aposto «perpétuo» “maranatha” não excluía a possibilidade de reconciliação do réu com Deus e com a Igreja, mas apenas realçava a obstinação ou dureza de coração do delinquente, que punha em perigo a sua salvação eterna.

2. O poder de excomungar membros nocivos ou indignos sempre foi reconhecido às sociedades devidamente organizadas; é condirão essencial para salvaguardar o bem comum. Os judeus o praticavam (cf. Jo 9,22). No Novo Testamento Jesus o insinuou em Mt 18,17, referindo-se a irmãos obstinados no mal; São Paulo fez uso desse direito, considerando a excomunhão como remédio salutar para um irmão que levava vida escandalosa (cf. 1Cor 5,3-5).

3. Até o séc. XV era vedado aos fiéis ter relações, mesmo no setor profano, com os excomungados; quem desrespeitasse esta proibição, incorria por sua vez em excomunhão. Tal medida, porém, provocava, na vida cotidiana, não poucos conflitos de consciência. Em vista disto, o Papa Martinho V, no concilio de Constança (1418), resolveu distinguir entre excomungados «tolerados» (tolerati) e excomungados «a ser evitados» (vitandi), distinção esta que foi explicitada pelo Direito atualmente vigente (cf. pág. 241 deste fascículo).

A excomunhão era frequentemente aplicada na Idade Média. No séc. XVI, porém, o Concílio de Trento (sess. XXV) admoestou os bispos e juízes eclesiásticos a usar de moderação e cautela nesse setor, pois, sem dúvida, a excomunhão vem a ser a mais grave de todas as penas eclesiásticas. O atual Código de Direito Canônico em 1918 renovou esta exortação e, desenvolvendo tendências já manifestadas por Pio IX no século passado, diminuiu notavelmente o número de casos que, por efeito da própria lei, são punidos de excomunhão (ver a lista dos mesmos sob o titulo número 4 deste artigo).

Consideremos agora de mais perto o que vem a ser exatamente a excomunhão, quais as suas modalidades, os seus efeitos e os casos em que a lei eclesiástica a inflige.

1. Que é excomunhão?

A excomunhão vem a ser, junto com a suspensão e o interdito, uma das penalidades eclesiásticas ditas «censuras». Por isto, faz-se mister, antes dò mais, aqui dizer o que o Direito Canônico entende por «censura».

O cân. 2241 define a censura como penalidade pela qual um cristão, tendo-se tornado delinquente obstinado, é destituído de certos bens espirituais ou de bens temporais anexos aos espirituais, até que se emende e seja devidamente absolvido.
Para esclarecer esta definição, pode-se imediatamente fazer a seguinte observação:

Os bens espirituais de que possam gozar os fiéis na Igreja, classificam-se em três categorias:
a) alguns têm. por assim dizer, sede nas almas, e permanecem invisíveis: seriam a graça santificante, os caracteres sacramentais, as virtudes infusas;
b) outros, embora não sejam hábitos residentes na alma, pertencem aos fiéis individualmente ou à personalidade própria de cada um; seriam as boas obras, as orações, os méritos...;
c) por fim, há bens espirituais que pertencem à Igreja como tal ou como Corpo de Cristo e dos quais cada fiel participa na medida em que está incorporado ou vinculado à Igreja; tais bens são os sacramentos. os sacramentais, as orações públicas feitas em nome da Igreja, a jurisdição...

Ora é sòmente esta terceira categoria de bens que a Igreja pode subtrair, por meio de censuras, aos fiéis delinquentes. A Sta. Igreja só interfere nas riquezas espirituais que Ela mesma, por seu ministério sagrado, fornece aos cristãos no foro social, comunitário (dito também «foro externo»). Ela nada pode tirar dos bens espirituais meramente interiores de cada alma (bens «de foro interno»), como são os méritos, a fé. a caridade...

Em outros ternos : mediante as suas censuras, a Sta. Igreja rompe apenas vínculos de foro externo. Essa ruptura, porém, vai exercer seus efeitos também no foro interno, pois. em consciência e diante de Deus, o cristão censurado está obrigado a respeitar a sua sentença (não lhe será licito, portanto, receber furtivamente os sacramentos, caso haja sido declarado Inepto para tal).

Levando-se em conta os bens espirituais de foro externo dos quais um cristão possa ser privado, distinguem se três tipos de censura: a excomunhão, a suspensão e o interdito.

A excomunhão é a mais grave das censuras, pois priva de Iodos os ' " bens espirituais de foro externo e exclui da sociedade dos fiéis.

O Interdito priva apenas do uso de certas instituições ou coisas sagradas. como. por exemplo, sacramentos, atos de culto solene, sepultura eclesiástica.

A suspensão só recai sobre clérigos, despojando-os do uso das faculdades eclesiásticas (uso de ordens ou uso de jurisdição); o clérigo suspenso não pode mais administrar os sacramentos, mas pode recebê-los caso tenha as devidas disposições.

Feitas estas observações sobre as censuras em geral, detenhamo-nos agora sobre a excomunhão como tal.
De quanto acaba de sei- dito, depreende-se que

A) Excomunhão não é condenação ao inferno.

A Igreja não tem poderes judiciais para definir a .sorte póstuma dos homens. Além disto, sabe-se que, enquanto alguém é peregrino sobre a terra, sempre lhe resta a possibilidade de lazer penitencia mesmo das mais graves culpas que haja cometido; a graça de Deus com ida o pecador até o fim da vida; este a pode aceitar de maneira visível e pública ou de modo oculto na hora da morte. Por conseguinte, a ninguém, nem mesmo ao Sumo Pontífice, será lícito dizer que tal delinquente está definitivamente condenado ao inferno.

B) Excomunhão também não é declaração de que alguém esteja em pecado mortal.

A excomunhão, como se disse atrás, não visa diretamente o foro interno ou as realidades íntimas da consciência. Ela apenas leva em conta o comportamento externo e visível do cristão. Tal conduta pode ser a de um verdadeiro delinquente, ao qual a justiça e o bem comum pedem a aplicação de uma sanção; mesmo nesse caso, porém, o aparente réu pode não ter culpa grave, ou simplesmente pode não ter culpa, em consciência ou perante Deus. — A excomunhão, portanto, supre o estado de pecado mortal na pessoa excomungada, mas de modo nenhum ela acarreta ou constitui tal estado. A rigor, por conseguinte, pode haver uma pessoa excomungada que, não obstante, se ache em estado de graça (é de crer, porém, que tal caso seja raro).

C) Positivamente, a excomunhão é, como dizíamos, a privarão máxima dos bens espirituais de foro externo que a Igreja possa infligir, com intuito estritamente medicinal, ou seja, em vista de correção do respectivo delinquente.
À guisa de explicarão, dir-se-á

1) Toda excomunhão supõe um delito (isto é, a violação de uma lei) externo ou visível (a Igreja não pune atos meramente internos) e grave. A gravidade da falta se mede não somente pela importância da lei violada, mas também pelo dano causado ao próximo e pela responsabilidade do delinquente.

Caso, por conseguinte, alguém tenha a intenção de cometer uma falta grave passível de excomunhão, mas só execute um ato que no foro externo tem pouca importância, não incorre em excomunhão, embora peque gravemente. É o que se daria, por exemplo, se alguém espancasse levemente um clérigo com premeditada intenção de o ferir mortalmente; tal pessoa, no seu foro interno, cometeria um pecado grave (por causa da sua intenção), mas não incorreria na censura anexa aos delitos vultuosos e veementes desse gênero.

2) A excomunhão supõe claro conhecimento de causa da parte do delinquente. O que quer dizer que só incorre em excomunhão a pessoa que saiba que tal ou tal delito (que ela está para cometer) é passível de excomunhão; quem não tenha conhecimento da censura, não é atingido por ela.

Esta afirmação se deriva do fato de que a excomunhão é pena estritamente medicinal, não meramente vingativa. Ora as penas medicinais, na Igreja, visam todas sanear a contumácia ou obstinação do delinquente. Pois bem. ensinam os canonistas, para que alguém possa ser dito obstinado ou contumaz, não "basta que saiba ser tal ou tal ato proibido pela Lei de Deus (ou pecado); faz-se mister outrossim, saiba que esse ato também é proibido pela lei da Igreja, e proibido de modo a acarretar tal ou tal pena para o delinquente. Somente se souber disto é que o réu poderá ser tido como obstinado e. consequentemente, passível de excomunhão.

3) Já que é pena estritamente medicinal, a excomunhão não pode ser infligida por prazo fixo, de modo a dever ser suspensa em data previamente estipulada. Ao contrário, a excomunhão durará tanto tempo quanto perdurarem as disposições «doentias» do delinquente; logo que este dê sinais evidentes de emenda de vida e peça absolvição, o caso é reconsiderado pela autoridade da Igreja, que em geral restitui a sua comunhão.

4) Ainda pelo mesmo motivo vê-se que a excomunhão só pode propriamente recair sobre pessoas físicas (pois sòmente estas são capazes de emenda de vida); caso seja proferida sobre um corpo moral ou lima sociedade, ela atinge os membros dessa sociedade que sejam pessoalmente culpados ou cúmplices do delito (cf. cân. 2255 § 2).
Está claro que a sentença de excomunhão só se pode aplicar aos filhos da Igreja, pois quem não Lhe pertence não pode ser excluído do seu grêmio. Donde se deduz, por exemplo, que um estadista não batizado não pode ser excomungado, caso se torne perseguidor da Igreja; em circunstâncias análogas, é excomungado o estadista católico.
Passemos a outro aspecto da questão:

2. Modalidades de excomunhão

Distinguem-se modalidades de excomunhão de acordo com o ponto de vista sob o qual essa pena é considerada. Contemplaremos aqui apenas dois aspectos principais.

Do ponto de vista da autoridade que a profere, faz-se distinção entre
- excomunhão «ferendae sententiae», a qual depende de sentença explícita do juiz eclesiástico (por isto também é dita «ex- communicatio hominis») e supõe admoestações canônicas antecedentes;
- excomunhão «latae sententiae», isto é, decorrente do texto mesmo da lei; segue-se imediatamente ao delito, não sendo necessárias previas admoestações nem processo judiciário (por isto, também é dita «excommunicatio iuris»).

As excomunhões «latae sententiae» se subdistinguem em cinco modalidades de acordo com a autoridade que esteja habilitada a absolvê-las. Existem, sim, excomunhões reservadas à Santa Sé dc modo especialíssimo, do modo especial, de modo simples; excomunhões reservadas ao Bispo ou Ordinário diocesano; excomunhões não reservadas.

Exemplos se encontrarão sob o titulo n. 4 desta resposta.

Do ponto de vista da gravidade das consequências, distinguem-se
- excomungados tolerados («tolerati»), com os quais é permitido aos fiéis entreter relações civis,
- excomungados a ser evitados («vitandi»), com os quais o intercâmbio, em tese, é ilícito (contudo relações meramente familiares ou civis ficam permitidas aos respectivos pais, consorte, filhos, súditos e a outras pessoas que tenham justo motivo para isso; cf. cân. 2267).

Para que alguém seja excomungado «vitandus» (a ser evitado) , requer-se, conforme o cân. 2258 § 2, o cumprimento simultâneo de três condições:
- o réu deve ser, na sentença de excomunhão, mencionado pelo respectivo nome ou por característica pessoal (profissão, encargo...);
- a sentença de excomunhão deve ser promulgada publicamente, seja pelo periódico oficial da Santa Sé («Acta Apostolicae Sedis»), seja por avisos colocados às portas das igrejas ou proferidos do alto dos púlpitos;
- a sentença deve declarar explicitamente que a pessoa excomungada há de ser evitada. Excetua-se apenas o caso de quem ouse levantar a mão contra o Sumo Pontífice: torna-se excomungado «vitandus», desde que haja cometido o atentado (cf. cân. 2343 § 1).

Ora, já que raramente se preenchem as três condições acima, exíguo tem sido o número de excomungados a ser evitados em nossos tempos. O ex-bispo de Maura, porém, D. Carlos Duarte, incorreu nessa pena extrema.

Podem ser outrossim mencionados:
- os sacerdotes Xavier Dvorak e Luis Svatos, por se haver agregado pertinazmente à Associação cismática «Jednota» na Tcheco-eslováquia (cf. A.A.S. XIV 11922] 593);
- o sacerdote Ernesto Buonaiuti, por disseminar contumazmente a heresia dita «Modernismo» (cí. A.A.S. XVIII [19261 40s);
- o sacerdote José Turmel, autor de obras modernistas publicadas durante quarenta anos sob a cobertura de quatorze pseudônimos sucessivos (cl. A.A.S. XXU 119303 517-520);
o sacerdote Prosper Alfaric, que chegou a negar obstinadamente a existência histórica de Jesus Cristo (cí. A.A.S. XXV [1933] 333).

Importa agora considerar

3. Os efeitos da excomunhão

3.1. A todo e qualquer excomungado é vedado
a) receber os sacramentos;
b) administrar os sacramentos e os sacramentais.
Contudo em caso de necessidade e na falta de outro sacerdote, torna-se licito a qualquer sacerdote excomungado administrar os sacramentos. Fora dos casos de evidente necessidade, um sacerdote excomungado tolerado os poderá administrar licitamente, desde que os fiéis o peçam de boa fé e é-ie esteja em estado de graça (se lhe faltasse o estado de graça, pecaria gravemente e incorreria em irregularidade). O excomungado «vitandus». porém, não poderá licitamente administrar fora dos casos de necessidade; incorreriam em falta grave ele e os fiéis que, cientes da excomunhão do sacerdote, dele recebessem o sacramento; nessas circunstâncias, a confissão seria não sòmente ilícita, mas até inválida, por falta de jurisdição do sacerdote;
c) assistir aos Ofícios Divinos. Por «Ofícios Divinos» entendem-se aqui os atos de culto que só podem ser executados por clérigos (a celebração da S. Missa, o canto das horas canônicas com ministros paramentados, a bênção do SSmo. Sacramento.»).
Ao excomungado, porém, não é proibido ouvir a pregação da Palavra de Deus nem entrar na igreja para rezar fora das horas de Ofício.
O reitor da igreja tem o direito (que não constitui uma obrigação) de pedir ao excomungado tolerado que se retire do recinto durante a realização dos referidos atos de culto. Em nossos dias a proibição de assistir aos Ofícios Divinos tem caído em desuso, desde que se trate de excomungados tolerados que queiram comparecer numa atitude meramente passiva.
Caso. porém, um excomungado «vitandus» penetre na igreja com a intenção de assistir a um ato de culto oficial, o reitor, primeiramente, intimá-lo-á a retirar-se; se nada conseguir, os fiéis abandonarão o templo: quanto ao sacerdote que esteja celebrando a S. Missa e já tenha proferido as palavras da Consagração, prosseguirá no altar até a Comunhão do preciosíssimo Sangue, indo depois terminar o Santo Sacrifício na sacristia;
d) usufruir das indulgências, dos sufrágios o das orações que a S. Igreja costuma fazer oficialmente pelos fiéis. Não é il:cito, porem (ao contrário, ardorosamente se recomenda) que os sacerdotes e os fiéis, a titulo particular, isto é, em seu nome pessoal, orem pelos excomungados; poderão fazê-lo mesmo na igreja e em público. É permitido (e até muito louvável) que os sacerdotes apliquem a S. Missa pelos excomungados, contanto que o façam sem solenidade e aparato a fim de evitar o escândalo ou qualquer aparência de aprovação do mal (vê-se, pois, que. em se tratando de aplicar a S. Missa, a sanção versa apenas sóbre a parte externa do rito sagrado; tal sanção é oportuna para evitar qualquer perigo de equiparação do bem e do mal). K altamente necessária a oração dos sacerdotes e dos leigos em prol dos excomungados, pois, sendo a excomunhão uma pena medicinal, é de desejar que os excomungados consigam a medicina ou o remédio espiritual que a respectiva sanção lhes deve proporcionar; ora a consecução desta graça pode ser eficazmente impetrada pela prece;
e) exercer algum cargo, oficio ou jurisdição dentro da Igreja;
f) usufruir de algum privilégio eclesiástico ou de pensões, benefícios ou dignidade dentro da Igreja;
g) eleger, nomear, apresentar alguém (o que se aplica principalmente nos casos de ser padrinho de batismo, de crisma...);
h) obter sepultura eclesiástica, a menos que na hora da morte o excomungado dê sinais de arrependimento.
Caso o excomungado persista por um ano inteiro no seu êrro, torna-se suspeito de heresia (cf. cân. 2340 § 1) e vem a ser tratado como tal.

3.2. Em particular, os excomungados «vitandi» são destituídos não somente dos emolumentos e benefícios anexos aos seus respectivos cargos e ofícios, mas também dos próprios cargos; perdem o direito a qualquer graça ou favor papal. As Missas que em benefício deles sejam celebradas, terão por fim obter a sua conversão, não podendo por conseguinte visar alguma graça de índole temporal como saúde ou emprego.

Os canonistas ainda enumeram outros efeitos da pena de excomunhão. Contudo, já que versam sobre pormenores e casos especiais, limitamo-nos à lista acima, a fim de considerar imediatamente o aspecto final da questão.

4. Os delitos passíveis de excomunhão

No Código de Direito Canônico são enunciados 37 casos de excomunhão «latae sententiae» (ou a ser contraída pelo fato mesmo de se cometer o delito). Desses casos, 4, para ser absolvidos, ficam reservados à Santa Sé de modo especialíssimo; 11, de modo especial; 11, de modo simples; 6 são reservados ao Bispo ou Prelado diocesano, e 5 não são reservados.
Ei-los todos, sucessivamente formulados:

1) A excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especialíssima recai sobre
- profanação do sacramento da Eucaristia (cân. 2320);
- violência física contra a pessoa do Sumo Pontífice (cân. 2343 $ 1);
- absolvição de cúmplice em pecado de luxúria simples ou qualificado (cân. 2367 § 1);
- violação direta do sigilo sacramental (cân. 2369 $ 1).

2) A excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especial se prende na maioria dos casos a delitos contra a fé:
- apostasia, heresia, cisma (cân. 2314);
- edição, defesa, conservação e leitura de livros que propaguem a apostasia ou o cisma (cân. 2318 $ 1);
- simulação de celebração da S. Missa e de administração do sacramento da Penitência por parte de quem não seja sacerdote (cân. 2322 S 1);
- apelo a um Concilio Ecumênico contra determinação do Sumo Pontífice reinante (cân. 2332);
- recurso aos poderes civis a fim de impedir ou entravar a execução de leis da Santa Sé ou dos seus legados (cân. 2333);
- promulgação de leis ou decretos contrários à liberdade ou aos direitos da Igreja; recurso aos poderes seculares para impedir o exercido da jurisdição eclesiástica (cân. 2334);
- o gesto de convocar perante tribunal civil um Cardeal, um legado da Santa Sé, um dos Oficiais maiores da Cúria Romana ou o respectivo prelado diocesano (do convocante) (cân. 2341);
- ofensa física infligida à pessoa de um Cardeal ou de um legado do Sumo Pontífice (cân. 2313 $ 2);
- usurpação de bens ou de direitos da Igreja Romana (cân. 2345);
- falsificação ou alteração de cartas, decretos ou leis da Santa Sé. ou ainda uso fraudulento e enganador desses documentos (cân. 2360);
- caluniosa denúncia feita aos superiores eclesiásticos contra um sacerdote como se houvesse solicitado no confessionário o seu penitente a pecado de luxúria (cân. 2363».

3) A excomunhão simplesmente reservada à Santa Sé está anexa a
- comércio sacrílego de indulgências (cân. 2327);
- inscrição na maçonaria ou em organizações afins (cân. 2335»;
- o gesto de um sacerdote que, de má fé e sem a devida delegação, ousasse absolver de excomunhão reservada à Santa Sé de maneira especial ou especialíssima (cân. 233S S 1);
- colaboração consciente e espontânea, em assuntos religiosos e em proporções amplas, de um clérigo com pessoa excomungada a ser evitada (cân. 2338 $2);
- o gesto de denunciar perante tribunal civil
um bispo que não seja o respectivo bispo diocesano de quem
denuncie»
ou um Abade ou Prelado Nullius.
ou um supervisor geral do Instituto de Direito Pontifício (cân. 2341)
- violação de clausura das monjas ou dos Religiosos regulares por parte de pessoas estranhas;
- saída ilegal da clausura por parte das monjas (cân. 2342);
- usurpação ou desvio do bens da Igreja (cân. 2316)
- duelo (cân. 2351 $1);
- tentativa de matrimônio por parte de clérigos de ordens maiores (bispos, presbíteros, diáconos, subdiáconos) ou por parte de religiosos ou monjas que tenham votos solenes (cân. 2388 $ 1);
- simonia com cargos e dignidades eclesiásticas (cãn. 2392);
- sequestração, destruição, ocultamento ou alteração de documentos pertencentes à Cúria diocesana (cân. 2405).

4) A excomunhão reservada ao bispo diocesano atinge
- celebração de casamento misto perante ministro nãocatólico; acordo assinado pelo nubente católico, permitindo o batismo ou a educação da prole respectiva fora da Igreja Católica (cân. 2319);
- fabricação, venda, distribuição e exposição ao público de falsas relíquias (cân. 2326);
- ofensa física à pessoa de um clérigo ou Religioso não enunciado no cân. 2313 § 1-3 (cân. 2343 $4);
- crime de aborto (cân. 2350 $1);
- abandono (ou apostasia) da vida regular por parte de Religioso professo (cân. 2385);
- contrato matrimonial por parte de Religiosos de votos simples (cân. 2388 $ 2);

5) A excomunhão não reservada está anexa a
- edição da Sagrada Escritura ou de comentários da mesma, sem a devida autorização eclesiástica (cân. 2318 S 2);
ordem de dar sepultura eclesiástica a infiéis, apóstatas, heréticos, cismáticos, interditados, contra as disposições do cân. 1240 § l (cân. 2339)"
- ilegítima alienação de bens eclesiásticos, todas as vezes que, para tanto, esteja prescrito o beneplácito apostólico (cân. 2347);
- ato de constranger um varão a abraçar o estado clerical ou de coagir um varão ou uma donzela a entrar na vida religiosa (cân. 2352);
- o «deixar de denunciar» o confessor que no confessionário solicite o seu penitente a pecado de luxúria (cân. 2368 §2).

Além disto, observe-se :
- o cân. 2330 confirma a excomunhão reservada de modo especialíssimo ao Sumo Pontífice (n.b.: não à Santa Sé), proferida peia Constituição Apostólica «Vacante Sede Apostólica» contra as pessoas que ousem ilegitimamente intervir na eleição de um Papa;
- a Sagrada Congregação do Concílio houve por bem, aos 22 de março de 1950. punir com excomunhão, reservada de modo especial à Santa Sé, o delito previsto pelo cân. 2380, isto é, o exercício de comércio por parte de clérigos;
- aos 9 de abril de 1951, o Santo Ofício declarou haver excomunhão, de modo especialíssimo reservada à Santa Sé, para todos os que ousem conferir ou receber a sagração episcopal sem prévia e explicita provisão da Santa Sé (medida esta que tinha em vista principalmente as sagrações episcopais cismáticas realizadas ultimamente nos países da Cortina de Ferro ou da Cortina de Bambu, em que os governos comunistas tendem a criar «Igrejas Católicas Populares» ou «Igrejas Católicas Progressistas»).

Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

Reflexões sobre a intercessão dos santos

Antes de explorar o título da única mediação de Cristo, seria prudente definir os termo. A palavra mediador geralmente possui dois significados. Em um estrito e primário sentido, refere-se à figura que se interpõe entre duas partes opostas para reconciliá-las. Há 4 componentes para esta definição: 1- intervenção pessoal; 2- de um princípio; 3- a intenção de efetivar uma reconciliação; 4- entre duas ou mais partes alienadas.

Em relação à nossa redenção a única pessoa que se adequa à definição estrita é Jesus Cristo. Somente Jesus se interpõe efetivamente entre as duas partes, Deus e todo o gênero humano. Somente Jesus foi capaz de alcançar a reconciliação com Deus. Como escreve São Paulo Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem (1Tm 2,5). Esta é a fé da maioria dos cristãos e o ensino oficial da Igreja Católica.

Há, entretanto, um sentido menor que os cristãos sempre compreenderam sobre a idéia de mediação. É a idéia de uma mediação subordinada na qual participamos da mediação de Jesus Cristo. É uma mediação que é feita através, com e em Cristo. O mediador subordinado nunca está isolado, mas sempre dependente de Jesus. Examinemos as fundamentações bíblicas deste entendimento, com especial referência a 1Tm 2,5.

Devem sempre se aplicar alguns princípios quando se interpreta a Bíblia. Por exemplo, a Escritura tem um único divino autor, mas vários autores humanos diferentes. Por essa razão, cada livro canônico forma apenas uma harmonia, cada parte concordando com a anterior e a sucessora. Assim, por exemplo, um ensinamento em Gênesis não pode ser contraditório a um ensinamento do Evangelho de João, ou vice-versa. Em adição, o corpo completo da verdade revelada em toda a Bíblia freqüentemente lança uma luz no entendimento de um livro ou de um texto específico. Por isso livros adiante nos explicam e aumentam nosso conhecimento sobre o livro de Gênesis, por exemplo. Em segundo lugar, para tentar se entender um texto particular, deve-se acima de tudo considerar o seu contexto.

Voltemos à primeira carta de Paulo a Timótio e ver como estes princípios se aplicam.

Se considerarmos o versículo em questão Porque há um só Deus e há um só mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, homem fora do contexto, facilmente iremos interpretá-la mal.

Será que "um só mediador" não significa apenas um - sem exceção? Por isso pedir a intercessão dos santos pode parecer anti-bíblico se visto por esta perspectiva. Contudo, esta interpretação não é precisa. A passagem não está isolada, mas é um versículo em um livro maior, chamado Epístola. Qual é, então, o correto sentido do que Paulo está falando? Como esta passagem se adequa ao contexto apresentado na Bíblia? Vamos considerar esta questão analisando o contexto imediato deste versículo.

São Paulo está rejeitando a idéia de mediadores subordinados a Cristo? Não, muito pelo contrário! O capítulo 2 se inicia com a seguinte exortação:

Acima de tudo, recomendo que se façam súplicas, pedidos e intercessões, ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, para que possamos viver uma vida calma e tranqüila, com toda a piedade e honestidade "Súplicas, pedidos e intercessões" são atos de mediação. Paulo está explicitamente instruindo Timótio para que os cristão assumam seu papel de mediadores subordinados entre Deus e aqueles que estão listados, todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade. O princípio teológico que Paulo usa para dar apoio à este comando é a passagem já citada no versículo 5 - a mediação única, e primária, de Cristo.

Assunto tão prático é o fato de os cristãos orarem uns pelos outros. Estabelecem grupos de orações exatamente para este propósito. Qual seria, então, a objeção de pedir aos cristão que estão no céu para orarem por nós na terra? Muitas pessoas são beneficiadas pelas orações fervorosas de muitos parentes e amigos. Uma vez no céu devemos supor que estes não mais se importam com nosso bem-estar, ou que Deus se ofenderia se nós pedíssemos que intercedessem por nós? Esta idéia certamente não encontra base em 1Tm 2,5. Indubitavelmente, a rejeição à intercessão dos santos se fundamenta no desejo de enfatizar a sublime e infinita capacidade da única mediação de Cristo. Esta louvável motivação leva, infelizmente, a um conhecimento inadequado da grandeza imensurável do poder mediador de Jesus. Em outras palavras, cai em conflito com importantes ensinos bíblicos.

Um importante tema que cerca a maioria dos livros da Bíblia é a idéia da aliança. A aliança é o pacto da parte de Deus que faz do seu povo a sua família. Certamente, os vários exemplos bíblicos que mostram a imperfeição do homem e sua falha sucessivas vezes de cumprir a aliança em nada diminui o poder de Deus, mesmo que seja sempre Deus quem dê todo o auxílio ao seu povo. A bíblia amplamente mostra que nosso Deus quer incluir os seus fracos e pecadores filhos nos assuntos da família - a salvação das almas. Dessa forma, Paulo, seguindo seu apelo para "súplicas, pedidos e intercessões" está instruindo Timótio que esta mediação é agradável a Deus.

Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,3-4)

No Antigo Testamento somos apresentados ao exemplo de mediação de Abraão ao pelo podo de Sodoma, que Deus aprovou e correspondeu. Em relação à história de José, John Skinner escreve:

A profunda convicção religiosa que reconhece a mão de Deus, não meramente em intervenções miraculosas, mas no trabalho dos fins divinos através da agência humana e pelo que podemos chamar de causas secundárias, é característica da narrativa de José [John Skinner, "Genesis," International Critical Commentary (Edinburgh: T. and T. Clarke, 1910), p. 487, sublinhado acrescentado]

Moisés, Davi, os profetas e os sacerdotes levíticos claramente exerceram seu papel como mediadores. No Novo Testamento Jesus formou os seus apóstolos e os concedeu o papel de mediadores. Ele deu-os instruções para evangelizar e batizar (cf. Mt 28,18-20), perdoar pecados (Jo 20,23) e de celebrar a Eucaristia (1Cor 11,23-25) - todas essas são funções de mediadores. Paulo termina sua carta a Timótio conectando a única mediação de Cristo com o seu próprio apostolado, que também era uma missão de mediação subordinada:

E deste fato - digo a verdade, não minto - fui constituído pregador, apóstolo e doutor dos gentios, na fé e na verdade (1Tm 2,7)

A verdade dos cristãos participando na única mediação de Cristo é abundantemente clara na prática da Igreja primitiva. Isto encontra-se afirmando inclusive por um dos maiores historiadores e patrologistas protestantes, JND Kelly. Ele diz:

Um fenômeno de grande significação no período patrístico foi o surgimento e gradual desenvolvimento da veneração aos santos, mais particularmente à bem-aventurada virgem Maria...Logo após vinha o culto aos mártires, os heróis da fé que os primeiros cristãos afirmavam já estarem na presença de Deus e gloriosos em sua visão. Em primeiro lugar tomou forma de uma preservação das relíquias e da celebração anual de seu nascimento. A partir daí foi um pequeno passo, pois já estavam participando com Cristo da glória celeste, para que se buscassem suas orações, e já no terceiro século se acumulam as evidências da crença no poder da intercessão dos santos [J.N.D. Kelly, Early Christian Doctrines, revised edition (San Francisco: Harper, c. 1979), p. 490]

Um exemplo se encontra nos relatos antigos do Martírio de Policarpo, que morreu aos 86 anos:

Quando [Policarpo] finalmente acabara suas orações, na qual relembrou cada um dos que havia encontrado, do pequeno ao maior, do famoso ao desconhecido, e de toda a Igreja Católica em todo o mundo, seu momento de partida havia chegado. Sentaram-no em um jumento e partiram da cidade[William A. Jurgens, The Faith of the Early Fathers, 3 volumes (Collegeville: The Liturgical Press, c. 1970), Vol. I, # 79]

Após seu martírio ouvimos falar da reverência que era prestada aos seus restos:

Então, ao menos, conseguimos tomar os seus ossos, mais preciosos que uma jóia e mais puros que o ouro, e os pusemos em local adequado. Que o Senhor nos permita ser capaz de nos juntarmos a ele na alegria e no júbilo, e de celebrar o nascimento do seu martírio [Ibid., # 81a]

São Cirilo de Jerusalém, em suas Leituras Catequéticas, compostas por volta do ano 350, escreveu:

Façamos menção aos já falecidos; primeiro aos patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, que por suas súplicas e orações Deus receberá nossos pedidos [Ibid., # 852]

Santo Agostinho fazia pregações duas vezes por semana desde sua ordenação em 391 até sua morte em 430. Sobre nosso assunto ele tem a dizer:

A oração, contudo, é oferecida em benefício de outros mortos de quem lembramos, pois é errado rezar por um mártir, a cujas orações nós devemos nos recomendar [Ibid., Vol. III, # 1513]

Em sua obra Contra Fausto, escrito por volta do ano 400, escreve:

O povo cristão celebra unidos em solenidade religiosa a memória dos mártires, tanto para encorajar que sejam imitados e para que possam repartir seus méritos e serem auxiliados pelas suas orações [Ibid., # 1603]

A eficácia da mediação subordinada dos cristãos descansa solenemente na mediação única de Cristo:

Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não permanecer em mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis tudo o que quiserdes e vos será feito (Jo 15,5-7)

Os cristãos são criados em grande 

solidariedade uns com os outros por causa desta união com Cristo (cf. Cl 1,18; Gl 3,28; Rm 7,4; 12, 4-8; 1Cor 6,15; 10,16; 12,12.27; Ef 4,11-12.16; 5,23; Hb 10,10). É esta relação que garante a potência que torna nossa intercessão uns pelos os outros eficaz, estejamos na terra ou no céu.