terça-feira, julho 22, 2014

A Missa em latim: origens e exceções

Tradução de um trecho do livro Work of Human Hands (pp. 85-88) do conhecido polemista católico tradicional Pe. Anthony Cekada:

A história de como e porque a Missa passou a ser celebrada em latim foi o assunto de inumeráveis trabalhos acadêmicos. Para nosso propósito aqui, será suficiente mencionar apenas alguns pontos desse processo.

1. A Igreja adota o latim. Nos anos 60, havia a impressão de que os primeiros cristãos tinham sido ardentes vernacularistas nos seus cultos, verdadeiros precursores do “Evangelho Pós-Conciliar da Inteligibilidade Absoluta”.

Mas esse não foi o caso. Nosso Senhor seguia a prática das sinagogas da Palestina quando cultuava, e elas empregavam o vernáculo apenas nas leituras da Sagrada Escritura e em algumas orações conectadas a essas leituras. Todas as orações importantes e fixas eram feitas em hebraico – uma língua tão morta para o uso comum como o latim hoje em dia. Louis Bouyer escreveu que se Cristo achasse essa prática intolerável, a teria denunciado, tal qual fez com outros formalismos vazios seguidos pelos fariseus (1).

Durante os primeiros três séculos da Igreja, o grego koiné foi a língua dominante em toda a bacia do Mediterrâneo. Segundo um estudioso, o Padre Angelus de Marco, as partes da Missa primitiva “só podiam ter sido desenvolvidas em grego, posto que o grego era a língua ecumênica da cristandade até a segunda metade do segundo século” (2). Note-se, contudo, que há um elemento de conjectura aqui. Nós não podemos dizer que cada cristão presente nas missas celebradas em koiné entendia todas as palavras.

É certo que o grego finalmente prevaleceu no culto cristão em Roma pelo começo do terceiro século. Mas nesse tempo muitos romanos já tinham se convertido ao cristianismo e a língua que eles usavam no cotidiano era o latim. Pelo meio desse século, os bispos e padres romanos escreviam suas correspondências oficias em latim (3). Eventualmente ele passou a ser usado em algumas partes da Missa. Finalmente o latim foi introduzido no Canon entre 360 e 382 (4).

A absoluta inteligibilidade no estilo do século XX não parece ter sido a regra nesse momento, pois a transição se processou durante um período de aproximadamente 120 anos, no qual o grego usado nas celebrações deixou de ser amplamente entendido (5). De Marco explicou o motivo da modificação ter sido tão longa:

O conservadorismo é uma característica de todas as liturgias, mas em especial da liturgia romana. Na tradição romana, existia uma grande ânsia pelas formas arcaicas de culto nas quais as orações, mesmo para os padres, se tornavam incompreensíveis... Então, fidelidade à tradição apostólica também era sinônimo de imutabilidade. A língua grega era considerada uma herança intocável. Sendo assim, uma mudança poderia por em risco a unidade [da Igreja] (6).

Do quarto século em diante, o latim se tornou a língua das missas no Ocidente. Os missionários romanos que levaram o cristianismo para as nações pagãs continuaram a oferecer a Missa em latim. Quando a Alemanha se converteu no século cinco, Jungmann diz que a ideia de celebrar em vernáculo sequer foi considerada. O latim é que foi usado (7).

Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados. E assim continuou por 1600 anos até o Vaticano II. No que se refere à Missa, De Marco notou que a Igreja “não se desviava em matéria de princípios” e cuidadosamente preservou o latim como a língua especial usada no Ocidente (8).

Em 1562, o Concílio de Trento na sua 22ª sessão reforçou essa posição especial do latim como língua litúrgica quando, em resposta a várias heresias protestantes sobre a Missa, lançou um anátema contra qualquer um que diga que “a Missa deve ser celebrada apenas numa língua vernácula” (9).

Ainda em 1955, Pio XII relembrou a posição do latim como norma e do vernáculo como uma rara concessão dada em razão de motivos sérios:

Nós não desconhecemos que, por razões sérias, algumas exceções definitivas foram concedidas pela Sé Apostólica. Nós não queremos que essas exceções se estendam, ou se propaguem mais amplamente, nem desejamos que elas se transfiram para outros lugares sem autorização da Santa Sé... A lei pela qual é proibido cantar as palavras litúrgicas na língua do povo continua em força de acordo com o que foi explicado (10).

2. Algumas exceções. A Igreja permitiu, e mesmo encorajou, os ritos orientais unidos a Roma a reterem a língua e os costumes próprios das suas tradições. Em algumas ocasiões, admitiu até mesmo que a Missa no rito romano fosse celebrada numa língua moderna ao invés do latim; essas concessões foram dadas devido a alguma razão pastoral grave, como a propagação da fé numa terra de missão ou prevenir o proselitismo dos cismáticos “ortodoxos”.

Vernacularistas, tanto de antes quanto de depois do Vaticano II, usaram essas exceções como combustível para seus argumentos, ou seja, como se o fato de Santa Sé ter permitido o uso de vernáculo no passado para casos particulares poderia, aliás, deveria, ser um sinal para se permitir um uso mais geral do vernáculo em toda a Igreja.

Mas o fato é que a analogia por trás desse argumento falha em dois pontos:

I. As línguas nos ritos orientais não são verdadeiramente vernaculares. Dependendo do rito, o nível de entendimento de um leigo vai de tudo a nada (11).

II. Quando Roma permitiu celebrações no rito romano em vernáculo, as traduções tinham de ser fiéis ao latim original (12). A insistência quase cansativa em traduções literais tinha um fim: preservar a integridade da fé católica.

As traduções fantasiosas do pós-concílio que rotineiramente omitem termos intimamente ligados aos dogmas católicos (como graça, Sempre Virgem Maria, etc.) não seriam nem rejeitadas, seriam denunciadas à Inquisição Romana.

(1) The Liturgy Revived: A Doctrinal Commentary on the Conciliar Constitution on the Liturgy (Notre Dame IN: University of Notre Dame Press 1964), 96-7.

(2) De Marco. Rome and the Vernacular (RV), 6.

(3) E. Ranieri, “Il Latino, Lingua Liturgica”, Ephemerides Liturgicae (EL) 65 (1951), 26, citando Theodore Klauser, Gustave Bardy e Christine Morhmann.

(4) RV, 22.

(5) RV, 19.

(6) RV, 19.

(7) Jungmann, Early Liturgy, 206. Os missionários pareciam desconhecer as teorias sobre a “liturgia pastoral” e a cortina de fumaça desse autor.

(8) RV, 93.

(9) DZ, 956. Para se verificar as discussões que precederam a condenação, veja-se Schmidt, Liturgie et Langue Vulgaire, 95-153; RV, 93-134; e Rochus Rogosic OFM, “De Concilii Tridentina Decreta super Antiquitate in Ritibus Retienda”, EL 68 (1954), 345-52.

(10) Encíclica Musicae Sacrae Disciplinae, 25 de dezembro de 1955, Papal Teachings: The Liturgy (Monges de Solesmes), 765-6.

(11) Cyril Korolevsky, Living Languages in Catholic Worship: An Historical Inquiry (Westminster MD: Newman Press, 1957), 66, resume o estado da questão da seguinte maneira: Nos ritos em que a Missa é oferecida em árabe, apenas os melquitas entendem tudo que é falado na igreja, e os coptas entendem apenas a parte em árabe. Os maronitas e outros sírio-ocidentais entendem mais ou menos as partes do culto que são em árabe, e os malancarenses a parte que é em malayalam. Os caldeus tem “pelos menos em sentido geral” do que é dito. Romenos, húngaros, georgianos e albaneses na Albânia entendem tudo; os gregos em princípio entendem tudo, mas isso depende do nível de educação individual. Os russos, ucranianos e armênios podem seguir as partes da Missa que são frequentes, mas nem sempre e nem tudo. Búlgaros e sérvios entendem apenas as partes mais ordinárias do culto. Os etíopes, ítalo-albaneses e malabares não entendem as palavras usadas em seus cultos.

(12) De Marco, Roman and the Vernacular, dá muitos exemplos: O Papa João VIII escreveu ao arcebispo da Morávia em 880, dizendo que não havia nada contra a fé em cantar a Missa e fazer as leituras em eslavão, “contanto que sejam bem traduzidas e interpretadas” (RV, 40-1). Em 1248 o Papa Inocêncio IV autorizou o bispo de Segna a usar o eslavão nas partes em que já estava sendo usado, com a condição de que a tradução se conformasse com o texto em latim dos livros litúrgicos romanos. Ele concedeu a autorização para se fazer isso na resposta à petição do bispo, “garantido-se que o sentido permanecesse intacto, apesar da variação de línguas” (RV, 45). Em 1615 o Papa Paulo V permitiu que a Missa fosse celebrada em mandarim, uma forma culta do chinês. Os documentos especificavam que a Missa não podia ser celebrada “na língua vulgar”, e que a tradução deveria “ser fiel no mais alto grau” (RV, 61). Em 1624 o Papa Urbano VIII deu permissão aos carmelitas da Pérsia para oferecerem a Missa em árabe clássico “no intuito de consolar a alma desses povos recentemente convertidos”. O decreto dizia que o Missal Romano deveria ser “traduzido literalmente para o árabe”, e que essa tradução deveria receber aprovação de Roma (RV, 81-2). Em 1631 a Congregação para a Propagação da Fé permitiu que os missionários teatinos no sul da Rússia cantassem o Evangelho e a Epístola em georgiano (uma língua eslava) ou armênio após as versões em latim, contanto que “fossem versões literais, e que não diferissem da Vulgata Latina ou do grego literal” (RV, 64).

Fonte: Apologética Católica


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