segunda-feira, agosto 15, 2016

Sobre essa Pedra - G.K Chesterton.



Para um católico a Igreja Católica é simplesmente a religião cristã; o presente dado por Cristo a São Pedro e seus sucessores que garante o direito de responder em todos os tempos todas as questões sobre o que ela realmente é; uma coisa cercada nas bordas de suas vastas terras por vários fragmentos divididos de sua própria substância, que consiste de pessoas que, por motivos diferentes, negam aquele direito de afirmar o que ela realmente é, e que consequentemente discordam uns dos outros, indefinidamente e cada vez mais, sobre o que ela realmente é. Pode ser acrescentado que eles discordam não apenas sobre a natureza do Cristianismo ideal que deve ser substituído, mas até sobre a natureza do Catolicismo Romano que deve ser desafiado. Para alguns ela é o Anticristo; para alguns é um ramo da Igreja de Cristo, que tem autoridade em certas províncias, mas não na Inglaterra ou na Rússia; para alguns é uma perversão corrupta da Verdade da qual a religião foi salva; para outros uma fase histórica necessária pela qual a religião deveria passar; e assim por diante. Mas deve ser notado pelos curiosos que apesar de haver muitas diferenças nos motivos oferecidos, há algo comum à maioria das emoções sentidas. As reações contra Roma são todas reações contra algo estranho. São milhares de coisas, mas todas as coisas com um tipo de frêmito nelas; um mistério, uma fera negra, uma estranha sobrevivência, um escândalo público, um constrangimento privado, um segredo aberto, um tópico indelicado, uma piada astuta, um último refúgio ou um salto no escuro: tudo exceto qualquer coisa que seja como todas as outras coisas.

Para um católico não há diferenças particulares entre aquelas partes da religião que os Protestantes e outros aceitam e aquelas partes que eles rejeitam. Os dogmas têm, é claro, suas proporções teológicas intrínsecas; mas no seu sentimento eles são todos uma coisa só. A Missa é tão Cristã quanto o Evangelho. O Evangelho é tão Católico quanto a Missa. Isso, penso eu, é o fato que o mundo Protestante tem achado mais difícil de entender e sobre o qual alguns dos mal-estares mais infelizes apareceram. Ainda assim isso surge de forma bastante natural da verdadeira história da Igreja, que teve que lutar incessantemente contra várias heresias bem opostas entre si. Ela não teve apenas que derrotar esses segredos para defender essas doutrinas, mas teve também que derrotar outras seitas para defender outras doutrinas, incluindo as doutrinas que essas seitas carinhosamente defendem. Foi apenas a Igreja Católica Romana que salvou as verdades Protestantes. Pode estar correto confiar na Bíblia, mas não haveria Bíblia se os Gnósticos tivessem provado que o Antigo Testamento fora escrito pelo Diabo, ou se tivessem bagunçado o mundo com Evangelhos Apócrifos. Pode estar correto dizer que Jesus sozinho salva do pecado, mas ninguém estaria dizendo isso se o movimento Pelagiano tivesse alterado toda a noção de pecado. Mesmo a própria seleção de dogmas que os reformadores decidiram preservar fora preservada para eles apenas pela autoridade que eles negaram.

É natural, portanto, que os Católicos não estejam sempre pensando na antítese de Católicos e Protestantes mais do que sobre Católicos e Pelagianos. O Catolicismo está acostumado a cortar o credo em poucas cláusulas; mas diferentes pessoas já quiseram que cláusulas bem diferentes sobrevivessem e que cláusulas bem diferentes fossem eliminadas. Assim, um Católico não sente que a reverência especial oferecida à Mãe de Deus seja sequer uma questão mais controversa que as honras divinas oferecidas ao Filho de Deus; pois ele sabe que a segunda foi muito contestada pelos Arianos, como a primeira pelos Puritanos. Ele não sente que o trono de São Pedro esteja mais especialmente em disputa do que a teologia de São Paulo, pois ele sabe que ambas já foram disputadas. Já existiram anti-papas; já existiram Evangelhos Apócrifos; já existiram seitas destronando Nossa Senhora e seitas destronando Nosso Senhor. Depois de quase dois mil anos desse tipo de coisa, os Católicos vieram a pensar no Catolicismo como uma coisa da qual todas as partes são em certo sentido igualmente atacadas e em outro sentido igualmente inatingíveis.

Agora, infelizmente, é impossível que um Católico afirme o princípio sem que pareça provocativo e, o que é muito pior, superior; mas a menos que ele de fato o afirme, ele não afirma o Catolicismo. Tendo afirmado, no entanto, em sua forma dogmática e desafiadora, como é seu dever fazê-lo, ele pode posteriormente sugerir algo do por que o sistema parece, para aqueles dentro dele, ser não tanto um sistema, mas uma casa, ou mesmo um feriado. Desse modo isso não significa ser superior no sentido arrogante; pois somente nesse sistema, apenas o santo é superior porque ele sente que é inferior. Não é dito que todos os hereges estão perdidos, pois não é dito que há uma consciência comum pela qual eles podem ser salvos. Mas definitivamente é dito que aquele que conhece a verdade inteira peca em aceitar meia verdade. Portanto, a Igreja não é um movimento, como todos aqueles que encheram o mundo desde o século XVI; isto é, desde o colapso da tentativa coletiva de toda a Cristandade de afirmar a verdade inteira. Ela não é o movimento de algo tentando encontrar o seu equilíbrio; ela é o equilíbrio. Mas o ponto aqui é que mesmo aqueles hereges, os quais apanharam meias verdades, raramente apanharam a mesma metade. Os Protestantes originais insistiram no Inferno sem o Purgatório. Seus sucessores modernos geralmente insistem no Purgatório sem o Inferno. Seus futuros sucessores bem possivelmente insistirão no Purgatório sem o Céu. Pode parecer uma sequência natural do culto ao Progresso por sua própria conta, e da teoria de que “viajar com esperança é melhor do que chegar ao destino”. Para o Católico cada uma dessas coisas pode ser disputada uma de cada vez, e tudo permanecerá.

Mesmo assim, ao fazer um sumário tão curto em um mundo ainda Protestante por tradição, será conveniente assumir que o leitor esteja familiarizado com o esquema Cristão daquelas coisas que, até pouco tempo, eram comuns a muitos ou a maioria dos corpos Cristãos: a Imagem de Deus, a Queda, a necessidade de Redenção, o Último Julgamento, e o resto; e descrever a fé Católica (da qual todas essas coisas realmente surgem) como o mundo a enxerga, pelas principais características que parecem distintivas porque são disputadas. Irei, portanto, dizer uma palavra ou duas sobre o que ainda seria comumente chamado de a marca do Catolicismo. Devo dizer muito pouco sobre a maior de todas, porque é admitidamente um mistério e um objeto de fé. Os Católicos acreditam que no Santíssimo Sacramento Cristo está presente, não apenas como um pensamento está presente na mente, mas como uma pessoa está presente em uma sala, velada apenas pelos nossos sentidos pela aparência do pão e do vinho. De seu aspecto histórico será suficiente dizer que os Católicos estão convictos de que ele é considerado nesse espírito pelo menos desde Sto. Inácio de Antioquia, que pertenceu à geração seguinte ao Evangelho. O senso comum disso, me parece, seria dizer que se as palavras de Cristo na Última Ceia tivessem sido mal entendidas, elas teriam sido mal entendidas pelos doze Apóstolos. Mas a doutrina é tão tremenda e transcendental que nós não podemos reclamar se alguns a entenderam como blasfema e extravagante. Só que eles não podem querer as duas coisas ao mesmo tempo. Eles não devem virar e reclamar porque afirmamos possuir Cristo como Deus vivo por um processo vital, ausentes das outras comunhões que chamaram o processo de impossível. Eles não devem resmungar dos nossos comentários sobre Cristo voltando para uma terra herética na primeira procissão carregando a Hóstia. Deve haver uma diferença entre a presença de Cristo no sentido deles e no nosso sentido, se eles realmente estão chocados e atordoados com o nosso sentido. Um Retorno que eles são obrigados a chamar de impossível nós certamente temos o direito de chamar de único.

Por razões práticas na civilização Protestante há outro fato que aparece mais claramente à vista, superando até mesmo a Transubstanciação. É o Papado que faz o Papista. Para ele, ao menos, isso remete às palavras altamente dramáticas sobre a Pedra e os Portões do Inferno; certamente aparece, para dizer o mínimo possível, como uma cadeira de autoridade superior nos debates dos primeiros Pais e Concílios; mas não fora logicamente e literalmente definido até o meio do século XIX. Nesse sentido é verdade que a ideia cresceu; mas nós não podemos jamais falar algo que não seja bobagem do tipo de evolução que imagina que algo cresceu a partir do nada. Mas contanto que uma verdade eterna possa crescer, na compreensão dos homens, ela cresceu continuamente com o aumento da experiência dos homens. O caso geral para um tribunal que define a verdade já foi aludido. Alertei que muito antes que os Protestantes se apressassem para preservar seu simples Cristianismo, mesmo esse Cristianismo tão simples não estaria lá para ser preservado se já não tivesse havido um tribunal da Igreja para preservá-lo. A questão então diz respeito à natureza do tribunal. Mesmo que a democracia fosse aplicável à revelação, não poderia haver um tribunal democrático que devesse decidir sempre e sempre democraticamente. Não seriam milhões de Católicos pobres e humildes que governariam; teriam sido os oficiais se não fosse o oficial. Seria um Santo Sínodo. Agora, todo instinto popular que os Católicos possuem parece dizer a eles que em vez de eles terem uma ordem oficial, isto é, uma oligarquia, é muito mais humano ter uma monarquia, isto é, um homem. É realmente notável que aqueles que romperam com essa monarquia puramente emocional geralmente estabeleceram uma monarquia imoral e material. O primeiro grande cisma no Oriente foi feito por homens que se viraram contra o Papa para se ajoelhar aos Césares e aos Czares. O último grande cisma no Ocidente foi feito por homens que atribuíram direito divino a Henrique VIII, sem contar Charles I. Aqueles que pensaram no papa como déspota demais sequer conseguiram escapar do despotismo.

É desnecessário explicar, creio eu, que o único despotismo do Papa consiste do fato de que todos os Católicos acreditam que Deus o protegerá de ensinar mentiras à Igreja naquelas raras e especiais ocasiões em que ele é requisitado a encerrar uma controvérsia com uma afirmação final sobre a fé. Seus discursos ordinários, apesar de naturalmente serem recebidos com profundo respeito, não são infalíveis. Seu personagem privado depende de seu próprio livre-arbítrio, como no caso de qualquer outra pessoa. Ele pode pecar como qualquer outra pessoa; ele deve confessar os pecados como qualquer outra pessoa; e ele ter sido Papa não faz nada por sua salvação. Mas a questão é, dadas as nossas necessidades por tais decisões finais para salvar o Cristianismo de grandes crises, que órgão da Igreja decide? Quanto mais a experiência histórica se acumula, mais profundamente gratos são os Católicos que o órgão seja um ser humano; uma mente e não um tipo, uma vontade e não uma tradição ou o tom de uma classe. Os melhores bispos governando como uma classe se tornariam um clube, como acontece com o parlamento. Eles teriam a mesma responsabilidade dispersa, a mesma lisonja mútua, o mesmo orgulho difuso e perigoso. Mas a responsabilidade de um Papa é tão solitária e tão solene que um homem precisaria ser um maníaco para não se fazer humilde diante dela.
Provavelmente o mundo Protestante consideraria como a próxima característica marcante, depois do poder dos padres de celebrar a Missa e dos Papas de definir a doutrina, aquele outro poder dos padres que é expresso no sacramento da Penitência. O sistema sacramental é inteiro baseado na ideia de que certos atos materiais são atos místicos; são eventos no mundo espiritual. Esse materialismo místico de fato nos divide daquelas formas de idealismo que diz que todo bem é interior e invisível e que a matéria não é digna de expressá-lo. Não é preciso dizer como isso se aplica à água do batismo, ao óleo da unção, etc. Mas eu estou deliberadamente considerando o sacramento que o nosso mundo menos entendeu; e, estranho o bastante, é aquele que é menos material e mais espiritual, consistindo de palavras faladas que expressam pensamentos secretos. De todos os sacramentos ele é, no jargão moderno, o mais psicológico. E a prova disso é que mesmo aquelas pessoas que o aboliram alguns séculos atrás descobriram que teriam que inventar uma nova imitação dele alguns anos atrás. Eles disseram às pessoas para que fossem a um novo padre, geralmente sem credenciais, e fizessem uma confissão geralmente sem a absolvição, e chamaram isso de psicanálise. O Catolicismo diria que a falta do confessionário produzira o moderno congestionamento e a estagnação de segredos tão mórbidos ao ponto de atingir a beira da loucura.

De modo amplo, pode ser dito que o Catolicismo teve a ideia, até aqui altamente única, de trabalhar a humanidade a partir de dentro. Houve e continua havendo qualquer número de sistemas políticos e éticos externos direcionando os homens para que ajam corretamente em meio à multidão; não há nenhum outro que a partir disso se preocupa com a razão de tais sistemas darem errado com o indivíduo. A maioria dos modernos está satisfeita em se apossar do plano da Utopia. Isso é na verdade o mesmo que se apossar do diário do Utopista e aprender o real motivo pelo qual ele nem sempre se comporta da maneira do Utopista. Mas, é claro, isso é bem inútil a menos que ele produza seu próprio diário de seu próprio livre-arbítrio. A menos que ele realmente deseje, não pode haver sacramento; e amenos que ele realmente se arrependa, não há absolvição. Pela história dessa instituição, ela segue em seu forte esboço o mesmo caminho que os outros casos da Missa e do Papado. Isto é, ela está indubitavelmente presente como uma ideia nos tempos mais primitivos; há discussões sobre a proporção dessa presença, e não há necessidade de discussão alguma de que ela se tornou mais elaborada, mais sistemática, e mais sutil com o processo da experiência. O que é chamado de Desenvolvimento é o desenrolar de todas as conseqüências e aplicações de uma ideia; mas de algo que está lá, não de algo que não está lá. Nesse sentido a Igreja Católica o único corpo Cristão que sempre acreditou na Evolução.

Quase não há espaço para falar de mais duas daquelas coisas que são chamadas de especialidades Papais, principalmente porque são chamadas de escândalos Papais. A primeira é a ideia de ascetismo e especialmente do celibato. A segunda é o culto à Bem-Aventurada Virgem. Da primeira será suficiente dizer que para a maior parte dos Católicos ordinários, que não são chamados a praticar austeridades, esses exemplos são valiosos não apenas como exemplos de heroísmo, mas como evidências bastante vívidas da realidade da esperança religiosa. Admitindo que para nós a divina luz seja estimada como a luz do dia, iluminando nossos problemas normais e cotidianos, ainda assim não os iluminaria de forma alguma se nós não acreditássemos que a luz fosse divina. Agora, nada poderia melhor provar que a luz é divina do que o fato de que alguns deveriam viver dela como se fosse alimento; nada poderia mostrar mais claramente que a religião é real do que o fato de que para algumas pessoas ela pode ser um substituto de outras realidades. Nós não temos dificuldade em acreditar que tais pessoas se relacionam mais diretamente com coisas divinas do que nós mesmos, como no caso daqueles que desfrutam diretamente de um amor divino em vez de indiretamente de um amor humano no casamento. E quando nós somos criticados por isso, nós recordamos com certa alegria que fomos nós que dissemos que o casamento era algo divino quando nossos críticos disseram o contrário.

Da mais popular, da mais poética e mais praticamente inspiradora de todas as tradições mais distintivamente Católicas do Cristianismo, eu direi muito pouco; de fato, eu direi apenas uma coisa. A honra prestada a Maria como a Mãe de Deus é, dentre milhares de outras coisas, o exemplo perfeito da verdade à qual eu recorri mais de uma vez: que mesmo aquelas que podemos chamar de verdades Protestantes foram salvas apenas pela autoridade Católica. Dentre elas está a própria e necessária verdade da subordinação de Maria a Cristo, como sendo afinal a subordinação da criatura ao Criador. Nada diverte mais os Católicos do que a sugestão, em tantas das velhas propagandas Protestantes, de que eles deveriam ser libertos da superstição chamada Mariolatria, como pessoas libertas do fardo da luz do dia. Toda a espiritualidade espontânea, diferente da necessária doutrina ortodoxa, está do lado da extensão e até mesmo do excesso desse culto. Se os Católicos fossem deixados ao seu julgamento privado, à sua experiência religiosa pessoal, ao seu sentido do espírito essencial de Cristo e do Cristianismo, a qualquer dos testes de verdade liberais e latitudinários, muito tempo atrás eles já teriam exaltado Nossa Senhora a um ponto de esplendor e supremacia super humana que talvez tivesse botado em perigo o puro monoteísmo no coração do credo. Em panfletos cobertos de opinião popular ela talvez fosse considerada uma deusa mais universal que Isis. É a autoridade de Roma que tem evitado que esses Católicos caiam em tamanha Mariolatria; a estrita definição que distinguiu entre a mulher perfeita e o Homem divino. Mas se fosse o caso de uma expressão de sentimento, restaria pouca dúvida sobre a qual caminho nossos sentimentos mais diretos e democráticos nos levariam. No meio dessa afirmação eu ignorei a afeição irrelevante da imparcialidade. É impossível para qualquer homem afirmar o que ele acredita como se ele não acreditasse. Mas me esforcei para descrever as características mais familiares dessa religião em termos de lógica, e não de retórica. E sobre essa última questão da doutrina referente à Virgem eu concluirei sem discursos adicionais. É simplesmente razoável que um credo apresentando por alguém que o afirma deva ser afirmado com convicção; mas tudo que eu escrevi nesse último tópico pode ser desfigurado com entusiasmo.


Fonte: http://www.sociedadechestertonbrasil.org/category/protestantismo/

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