QUE É O MODERNISMO?


FILOSOFIA E RELIGIÃO



RACIONALISTA (Campinas):«Que é o chamado «Modernismo», contra o qual a Igreja prescreve um juramento aos clérigos e aos fiéis em determinadas ocasiões da sua vida pública?»

«Modernismo» é, como «Liberalismo», vocábulo em si impreciso, suscetível tanto de bom como de mau sentido. Na história do Cristianismo, designa o movimento que, no fim do século passado e no inicio do presente, tomou vulto, visando dar nova interpretação aos ensinamentos do Catolicismo e acomodá-los à mentalidade moderna. Essa tendência ultrapassou os limites do que é licito, equivalendo a verdadeira diluição e corrupção da mensagem do Evangelho em benefício do agnosticismo e do naturalismo.

A fim de proferir um juízo adequado sobre tal fenômeno, deveremos primeiramente focalizar a sua origem e o seu conteúdo doutrinário.

1. Origens do movimento modernista

É notório que, a partir do séc. XVIII, o pensamento moderno, sob o influxo do criticismo e das descobertas científicas, se foi mais e mais modificando tanto no setor da filosofia como no dos conhecimentos naturais.

Na filosofia, tomaram voga crescente os princípios lançados por Kant (t 1804), segundo os quais a razão não pode chegar a conhecer a verdade em si, mas apenas afirmar seus conceitos subjetivos, como se correspondessem à realidade objetiva; os homens perdiam assim a confiança na inteligência, nas suas afirmações espontâneas e nas suas conclusões, para dar lugar a um indiferentismo doutrinário ora mais, ora menos acentuado.

Doutro lado, as ciências naturais se viram enriquecidas por múltiplas conquistas de história, arqueologia, etnologia, biologia, etc., que puseram em xeque teorias até então tidas como indiscutíveis. O espírito critico se foi aguçando; o homem moderno experimentou a tendência a duvidar do que haviam sempre ensinado os antepassados; a idéia de «evolução» (primeiramente aplicada por Darwin ao setor da biologia) tornou-se a idéia mestra das ciências, despertando na mentalidade moderna uma atitude reservada perante os valores da cultura (a evolução sendo tida como lei universal, parece que já não há valores absolutos).

Ora nem tudo que essa revolução do pensamento afirmava, era errôneo; sem dúvida, muitas das conquistas da ciência moderna equivaliam a um verdadeiro progresso e exigem consideração da parte de todos os pensadores, não excetuados os teólogos.


Em particular, a exegese bíblica pedia atualização. Os resultados da arqueologia e da linguística modernas suscitavam problemas novos referentes à autenticidade, à estrutura e à interpretação dos livros inspirados. As escavações de monumentos do próximo e médio Oriente, assim como os conhecimentos de religiões pagãs, traziam à tona analogias com o Cristianismo que, à primeira vista, surpreendiam, solicitando uma palavra de explicação da parte dos teólogos e historiadores.

Tornava-se assim necessário aos intelectuais católicos levar em conta os resultados recentes das ciências humanas para poder de maneira mais adequada expor aos incrédulos a mensagem do Cristianismo («de maneira mais adequada» não quer dizer «em sentido oposto»).

Em consequência, por todo o decorrer do séc. XIX verificaram-se tentativas de assimilar à doutrina religiosa católica os dados novos da ciência. Contudo, sendo esta uma tarefa difícil, prestou-se a exageros e desvios; nem todos os apologistas cristãos perceberam logo de inicio o que a Igreja poderia adaptar sem trair a sua missão, e o que Ela deveria guardar intato, sob pena de se desdizer e de renegar o Cristo.

Basta recordar, dentre as tentativas malogradas, o indiferentismo de Lamenais, condenado pela Igreja em 1834; o racionalismo de G. Hermes (1835), Guenther (1857) e Frohschammer (1862); o tradicionalismo ou fideísmo (reação contra o racionalismo, só valorizava a fé) de Bautain (1840) e Bonetty (1855); o ontologismo (o homem conhece a Deus por intuição inata) de Rosmini (1861),... a lista de 80 erros modernos catalogados no Silabo de Pio IX (1864).

Em 1870 o Concilio I do Vaticano considerou a problemática, proclamando a índole sobrenatural da fé e a sua harmonia com a razão. Contudo a agitação entre os pensadores católicos mesmos não se dava por acalmada. Muitos, movidos por amor à causa católica, desejavam fazer uma apologética do Cristianismo que levasse em. conta as conclusões mais recentes das ciências profanas assim como os postulados e as preferências da mentalidade moderna; visavam destarte tornar mais atraente a pregação cristã.

Dentre esses estudiosos, é que procedeu a corrente modernista; seus arautos.exageraram a tendência a tornar o Cristianismo simpático ao homem moderno; «modernizaram», com detrimento do patrimônio mesmo que eles queriam defender. Os seus principais representantes são: E. Le Roy e Alfred Loisy, na França; Gl Tyrrell, na Inglaterra; R. Murri, S. Minocchi, G. Semeria, Ernesto Buonaiuti, na Itália. A sua intenção de tomar a Cristandade mais penetrante na vida moderna era inegàvel- mente boa; de modo nenhum pretendiam desligar-se da Igreja. Daí o caráter fortemente sedutor do seu movimento; o protestante P. Sabatier julgava mesmo tratar-se de um «renascimento católico» (cf. «Les Modemistes» pág. 41). Contudo a boa intenção dos modernistas estava minada por um vício radical: o relativismo doutrinário, ou seja, a arbitrariedade com que seus autores trataram as proposições clássicas do Cristianismo; sem distinguir entre o essencial e o acidental, sem respeitar magistério ou. autoridade da Igreja, entregaram-se desenfreadamente à tarefa de adaptar, realizando assim uma obra de destruição tremendamente sorrateira e capciosa.

Tocou ao Papa São Pio X denunciar os erros em curso. Fê-lo primeiramente mediante o decreto «Lamentabili» do S. Ofício, datado de 3 de julho de 1907. Este documento reunia os desvios do modernismo em 65 proposições, que reproduziam de perto os dizeres mesmos dos respectivos autores (em particular, de Loisy). A última dessas proposições .exprime muito bem o espírito do conjunto: «O Catolicismo atual não se pode adaptar à verdadeira ciência, a menos que se transforme em um Cristianismo não dogmático, isto é, em um protestantismo largo e liberal» (cf. Denzinger, Enchiridion 2065).

■ Poucos meses depois, isto é, aos 8 de setembro de 1907, o mesmo Pontífice publicava a encíclica «Pascendi Dominici gregis», que concatenava em síntese lógica as diversas afirmações do modernismo e lhes opunha uma critica muito perspicaz; nesse seu escrito, Pio X apresentava o modernismo como o «rendez-vous» ou compêndio de - todas as heresias, pois, na verdade, não impugnava uma ou outra proposição da doutrina cristã, como as heresias anteriores, mas afetava os fundamentos mesmos da doutrina, como sejam as noções de fé, revelação, veracidade da Bíblia, etc.: «Não é contra os ramos ou os rebentos que os modernistas lançam o machado, mas é contra a raiz mesma, ou seja, contra a fé e suas fibras mais profundas. Tentam fundir entre si o racionalismo e o Catolicismo, usando de tão requintada habilidade que facilmente seduzem os espíritos desprevenidos» (Pio X, ene. «Pascendi»).

Por último, a fim de evitar toda ambiguidade no magistério e nas atitudes práticas tanto dos clérigos como dos leigos, Pio X, a 1' de setembro de 1910, publicou o «Motu proprio» Sacrorum Antistitum, em que prescrevia um juramento antimodernista até hoje em uso.

Nesse documento, o Pontífice primeiramente justificava a medida tomada, lembrando que, embora condenado, o Modernismo persistia em uma espécie de «liga clandestina», cujos membros procuravam instilar na sociedade cristã o veneno das suas opiniões, «publicando livros e jornais anônimos ou munidos de pseudônimos». A seguir, o Papa dava algumas normas para orientação dos bispos e, por fim, o texto do juramento. Este professa aceitar, entre outras coisas, as provas racionais da existência de Deus, a instituição da Igreja por Jesus Cristo, a imutabilidade dos dogmas, a harmonia entre a fé e a razão, o respeito ao magistério e às tradições da Igreja. Tal juramento era declarado obrigatório para todos os clérigos que estivessem para receber as ordens sacras, assim como para os sacerdotes incumbidos da cura de almas, para os dignitários eclesiásticos e superiores religiosos, ao entrarem no exercido de suas funções, e para todos os professores que iniciassem o magistério.

O «Motu proprio» de. 1910 marca o inicio do declínio do Modernismo. Alguns arautos do movimento ainda tentaram fazer valer as suas ideias publicando em sucessivas edições «D programma dei modernisti. Risposta all'Enciclica» (Roma 1908), de autor anônimo. Em breve, porém, a guerra de 1914/1918 desviou a atenção dos pensadores para outros problemas. Ao mesmo tempo, foi-se percebendo que a conciliação entre a razão e a fé se pode perfeitamente obter sem que os cristãos desvirtuem o Credo...

Interessa-nos examinar mais precisamente

2. As principais proposições do Modernismo

1. Os pioneiros do movimento evitavam expor de maneira sistemática e íntegra a sua ideologia. Isto se explica, em boa parte, pelo fato de que o Modernismo, antes de ser propriamente um corpo compacto de doutrinas, constitui um clima, uma atitude geral de pensamento filosófico e religioso, que se inspira na ideia básica de que há antagonismo entre o Cristianismo tradicional e a cultura contemporânea.

Além da proposição 65, citada à pág. 269, merecem referência as afirmações abaixo, transcritas do decreto «Lamentabili»:

57. «A Igreja se mostra inimiga do progresso das ciências naturais e teológicas».

63. «A Igreja se mostra incapaz de defender a moral evangélica, porque adere obstinadamente a doutrinas ditas imutáveis, que não se podem conciliar com o progresso moderno».

64.

65. «O progresso das ciências exige a reforma dos conceitos cristãos concernentes a Deus, ù criação, à revelação, à pessoa do Verbo Encarnado e à Redenção».
66.

2. Para remover este pretenso antagonismo, os modernistas puseram-se a «reformar» os conceitos fundamentais da_ doutrina cristã : assim as noções mesmas de Verdade e Religião...

Verdade não seria mais do que um sentimento pessoal ou um modo de ver que cada um descobre e vai experimentando dentro de si mesmo. Já que tal sentimento é variável de indivíduo para indivíduo e de época para época, a própria noção de verdade torna-se algo de relativo.

São palavras de Loisy: «A verdade, na medida em que é um bem do homem, não é mais imutável do que o homem mesmo. A verdade evolui com o homem, nele, por ele; isto não impede que seja a verdade para ele; aliás, só existem verdades relativas» (Autour d'un petit livre 192). Cf. prop. 58 do decreto «Lamentabili».

Consequentemente, Religião não seria senão esse tipo de sentimento aplicado ao «Divino» ou às coisas de Deus. — Tais conceitos eram o fruto genuíno da orientação geral dos estudos do século passado, que se achavam dominados pela idéia darwinista de «evolução». Vejamos de mais perto como estas noções básicas se aplicaram aos dois principais setores do pensamento religioso :

a) Setor teológico.

Fé vem a ser a percepção de Deus que está presente no mais íntimo do homem em virtude de uma lei de imanência. Toda e qualquer religião visa desenvolver essa percepção.


A percepção de Deus em nós necessita de se exprimir em fórmulas, que são comumente chamadas dogmas, mas que nada têm de perene ou imutável; cada época apresenta «seus dogmas».

Entre os grandes vultos religiosos da humanidade, sobressai Jesus de Nazaré, que gozou de experiência particularmente íntima de Deus. Comunicou-a a seus discípulos, sem, porém, propor doutrinas precisas; apenas anunciava calorosamente a vinda iminente do reino de Deus e convidava os homens à purificação interior. Os dogmas do Cristianismo são incrustações sobrepostas à pregação de Jesus por ânimos férvidos, como o de São Paulo; ficam estranhos ao conteúdo primitivo do Evangelho, devendo sua origem principalmente à mentalidade helenista. A fusão da mensagem inicial de Jesus com os postulados da cultura grega era necessária para que o Cristianismo pudesse sobreviver no ambiente greco-romano dos primeiros séculos.

Quanto às formas de culto ou aos ritos, são, como os dogmas, outras tantas expressões da experiência religiosa subjetiva dos cristãos; nada têm de fixo ou imutável.

Vista dentro deste quadro, a Igreja não passa de produto da consciência religiosa coletiva; às autoridades eclesiásticas não . cabe senão o papel de exprimir os sentimentos religiosos dos indivíduos. — Tudo, portanto, é variável na história do Cristianismo : doutrina, culto, organização da Igreja...; apenas um elemento é constante, garantindo a unidade básica dos fenômenos : é a experiência religiosa latente em todos os discípulos de Jesus (!). Essa experiência religiosa também se chama Revelação de Deus aos homens. Formas de culto e profissões de fé só têm o valor de meios que, de um lado, manifestam e, de outro lado, favorecem o aprofundamento de tal experiência ou revelação; oxalá com o tempo possam os homens dispensar esses subsídios sensíveis, a fim de realizar umà religião reduzida exclusivamente ao setor do espírito!

Abraçando tais idéias de maneira elegante, os modernistas evitavam combater èxplicitamente algum ponto do Credo da Igreja; antes, pretendiam corroborar a pregação eclesiástica.


No seu «Programma», os modernistas não hesitavam em asseverar que «tinham consciência de ser os mais beneméritos dentre os promotores do reino de Cristo no mundo», «os filhos mais dedicados e ativos da Igreja», os representantes «das mais puras tradições cristãs»!

Palavras vazias, essas, pois o relativismo com que os modernistas focalizavam as verdades religiosas, equivalia a um desvirtuamento das mesmas e os alheava, por completo, & genuína mentalidade da Igreja.

Muito ligada ao relativismo é a atitude ambígua, camuflada, com que os modernistas se apresentavam em público .e disseminavam as suas ideias: além do pseudônimo e do anonimato, manejavam a sátira com arte; infiltravam-se sorrateiramente nas Universidades e nos Seminários, procurando atrair principalmente o jovem clero e os homens de responsabilidade; quando atingidos por alguma censura eclesiástica, mostravam-se solidários entre si, constituindo como que uma onda compacta de resistência.

Assim, quando Pio X resolveu vedar o magistério e as ordens sacras aos adeptos do Modernismo, os pioneiros deste responderam no seu «Programma» (pág. 128), comparando o Pontífice a Juliano o Apóstata, que removeu da cátedra os mestres cristãos !

b) Setor bíblico

Os livros da Escritura Sagrada não seriam senão a cristalização de uma série de experiências «místicas» feitas através dos séculos do Antigo Testamento e no limiar da era cristã. Seu objetivo não seria «ensinar a verdade», mas «purificar o sentimento religioso dos leitores» e levá-los a um teor de vida honesta. Assim se entende que a Bíblia não contém erro nem mentira. Pode ser dita «inspirada por Deus» na medida em que os autores sagrados escreveram sob a impressão de estar unidos ao Supremo Senhor; por conseguinte, a inspiração do profeta Isaias não difere da de Platão ou de Buda.

Sendo assim, não é necessário, para os modernistas, admitir a historicidade das narrativas do Antigo e do Novo Testamento, nem mesmo a dos Evangelhos; estes exprimem o que as gerações cristãs do séc. II pensavam a respeito de Cristo; foi a crença dos discípulos dessa época que «inspirou» os Evangelhos, em vez de ter sido o Evangelho a fonte de inspiração da crença dos cristãos.

«Os Evangelhos foram aumentados por acréscimos e correções continuas, até a época em que 6 cânon foi definitivamente estipulado; donde se segue que nesses livros só ficou vestígio pálido e incerto do ensinamento de Cristo» (prop. 15 do decreto «Lamentabili»).

Em particular com referência às parábolas, Loisy, seguindo o critico liberal Jüllcher, distinguia três etapas na redação das mesmas :

na primeira, os pregadores do Evangelho terão referido as parábolas sem lhes acrescentar explicações, porque essas histórias, tão simples como eram, não ofereciam dificuldade ao povo (assim se terá dado, por exemplo, com a parábola do semeador; cf. Mt 13, 1-23);

mais tarde, em uma segunda etapa, os pregadores, depois de narrar, as parábolas, apresentavam os Apóstolos a pedir a respectiva interpretação a Jesus. Esta segunda fase era indicio de que os cristãos já não. entendiam o sentido primitivo das parábolas e nelas procuravam mistérios (na parábola do semeador, a explicação dada por Jesus já supõe o exíguo sucesso da pregação do Evangelho entre os judeus e a superficialidade de certas conversões de gentios; era a estes fatos posteriores que a explicação atendia, procurando elucidá-los por meio da parábola do semeador : há diversos tipos de solo que recebe a semente...);

na terceira etapa, os pregadores ainda intervieram mais profundamente no teor das parábolas, a fim de dar conta da obcecação e da reprovação de Israel patenteada peia ruptura definitiva entre o Judaísmo e o Cristianismo.

A liberdade de redação assim usurpada pelos Evangelistas £ explicada pela proposição modernista seguinte (n' 14 do decreto «Lamentabili») :

«Em muitas de suas narrativas, os Evangelistas não referiram tanto a verdade quanto aquilo que eles julgaram mais proveitoso aos leitores, fosse mesmo a inverdade».

A própria Divindade de Cristo foi pelos modernistas interpretada em sentido liberal: o «Cristo da fé», tido como Deus, dizem, difere do «Cristo da história», que era mero homem. Não interessa ao exegeta examinar documentos para saber se Cristo nasceu virginalmente, se fez os milagres que Lhe são atribuídos, se ressuscitou dentre os mortos, etc., porque estas proposições carecem de base na realidade histórica, só têm consistência para quem possui fé.

Eis, extraídas do decreto «Lamentabili», algumas proposições que formulam explicitamente tais idéias :

27. «A Divindade de Jesus Cristo não se prova pelos Evangelhos, mas é um dogma que a consciência cristã deduziu da noção de Messias».

29. «Pode-se reconhecer que o Cristo, tal como no-lo mostra a história, é muito inferior ao Cristo, objeto da fé».

35. «Cristo não -teve sempre consciência da sua dignidade messiânica».

36. «A ressurreição do Salvador não é pròpriamente um fato de índole histórica, mas um fato de índole meramente sobrenatural, que não foi demonstrado nem pode ser demonstrado e que a consciência cristã deduziu lentamente dos outros (fatos da vida do Salvador)».

A consequência dessas premissas bíblicas é que o exegta católico pode e deve proceder ao estudo da Sagrada Escritura como ao estudo de qualquer outro livro, sem atender a norma alguma de ordem sobrenatural:

12. «O exegeta que se queira entregar aos estudos bíblicos com proveito, deve, antes do mais, pôr de lado a crença preconcebida na origem sobrenatural da Escritura Sagrada, e não a interpretar de modo diverso do que conviria a documentos meramente humanos».

Haja vista outrossim a seguinte proposição, que exprime bem a ambiguidade característica e intencionada dos modernistas:

24. «Não se pode censurar o exegeta que afirma premissas das quais se segue que os dogmas da Igreja são històricamente falsos ou duvidosos, contanto que não negue diretamente esses mesmos dogmas».

Após esta breve explanação das principais ideias disseminadas pelo Modernismo, procuremos formular sobre as mesmas

3. Um juízo sereno

Sem dificuldades percebe-se que o Modernismo se coloca em oposição frontal aos princípios mesmos da mensagem cristã.

Fixemos alguns pontos que parecem constituir os grandes desvios dessa ideologia.

1) Agnosticismo ou relativismo. O modernista, como vimos, parte do princípio de que só há «verdade para o individuo»; a verdade não é algo de absoluto e válido para todos os tempos, todos os lugares e todos os indivíduos humanos. Ê esse relativismo que permite ao modernista afirmar tudo aquilo que a Igreja afirma, mas afirmar sem compromisso, ... afirmar negando um consentimento interior total.

A posição é cômoda, porque, de um lado, tende a evitar polêmica e, de outro lado, não obriga, sempre deixando margem para evasivas. Em última análise, o Modernismo dá margem a cada um para fazer a religião, ... a sua religião, em vez de «ser feito e dirigido pela Religião». O amor próprio e o orgulho do homem contemporâneo são destarte bajulados; daí o poder de sedução do Modernismo; é realmente o pseudocredo religioso que corresponde à mentalidade dos novos tempos. A religião entendida dentro desta perspectiva fica sendo, em aparência apenas, religião; na verdade, torna-se mero rótulo que dá foros de piedade è irreligião.

A respeito do orgulho que alimenta a posição modernista, segue-se aqui oportuna observação:

«Ao ler as publicações dos modernistas, ficamos surpreendidos e penalizados por encontrar aí tão frequentemente o «Não sou como os demais homens» (do fariseu da parábola de Lc 11,11). Os" modernistas se apresentam como «os homens mais inteligentes e cultos», «os mais ardentemente sinceros, os mais desinteressados», «os mais profundamente religiosos e evangélicos», etc.

Não estamos acostumados a encontrar tais expressões nos lábios dos verdadeiros reformadores católicos, como São Bernardo, por exemplo, ou São Francisco de Assis. Mas algo que impressiona ainda mais do que essas ladainhas um tanto simplórias é o espírito de casta, é a preferência dada ao modo de ver de um grupinho de intelectuais antes que às decisões da hierarquia e ao senso cristão do povo fiel» (J. Lebreton, Modernisme, em «Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique» III 685).

.Que dizer do relativismo capcioso «libertador» dos Modernistas?

— O relativismo constitui verdadeiro atentado não somente contra o Cristianismo, mas também contra a inteligência e a dignidade humanas. Ao homem nega-se assim a capacidade de apreender a realidade como ela é. Ora esse ceticismo é indício de decadência do pensamento.
Ademais, o relativismo restaura o princípio dos sofistas gregos : «O homem é a medida de todas as coisas» (cf. Platão, Teateto 152, fragm. B I); tal princípio caracterizava precisamente a decrepitude da cultura grega. Na verdade, o homem não dá a medida à realidade que o cerca. Em outros termos : o homem não é o critério para se definir o valor das demais criaturas; ele foi feito, antes, para reconhecer os valores que existem independentemente da inteligência humana; é neste reconhecimento que justamente consiste a grandeza do homem. Muito pobre seria o universo, se ele tivesse que ser medido pelas exíguas capacidades humanas.

O relativismo, adaptável a todas as tendências do sujeito, é incapaz de dar estrutura não só ao pensamento, mas à conduta de vida dos que o professam; um tal relativismo solapa a tenacidade e a virilidade indispensáveis para que a personalidade humana se forme.

De modo especial, no setor da Religião, qualquer forma de relativismo é contraditória e absurda, pois Religião significa tomada de posição do homem diante do Absoluto; ora não toca ao homem, relativo e contingente como é, «projetar» o Absoluto e configurar a seu bel-prazer as relações com Ele; antes, compete-lhe receber a mensagem do Absoluto. A verdadeira religião não pode ser aquela que o indivíduo concebe ou imagina em seu modo de ver subjetivo; ao contrário, ela é necessariamente transmitida e intimada ao homem por sinais objetivos que deem testemunho seguro de que Deus é quem se está manifestando.

Dizer, portanto, que a Religião pode variar segundo as épocas e as mentalidades, equivale a desvirtuar e renegar o conceito mesmo de Religião.

2) Igreja e progresso dá civilização. È vão o pressuposto modernista segundo o qual a Igreja, ensinando verdades de fé, seria contrária às conquistas da inteligência humana.

A inteligência mesma, raciocinando sobre a realidade que a cerca, é levada a afirmar algo de transcendente e invisível, ou seja, o mistério de Deus, de que tratam a fé e a Religião: A fé assim aparece como a coroa da sabedoria humana.

Consciente disto, a Igreja não poderia deixar de estimular as conquistas da inteligência, tanto no setor especulativo como no da técnica. Vem a propósito a seguinte declaração do Concilio I do Vaticano (1870) :

«Longe de pôr obstáculo ao cultivo das artes e das ciências humanas, a Igreja as favorece e as promove de várias maneiras. Ela não ignora nem despreza as vantagens que daí resultam para a vida do homem na terra; antes, ela reconhece que, provindo de Deus, o Mestre das ciências, as artes e as ciências fazem voltar a Deus, com o auxilio da graça, desde que sejam cultivadas como convém» (Denzinger, Enchiridion 1799).

A Igreja, portanto, não coíbe a liberdade de pesquisa de seus filhos. Apresentando-lhes as verdades da fé, Ela apenas os preserva de cair em erro, pois o que é certo nó plano da Religião há de ser certo também no plano da ciência (a verdade é uma só); por conseguinte, as verdades da fé não poderão deixar de ser levadas em conta pelo cientista que queira explicar o universo,... levadas em conta ao menos como critérios negativos, ou seja, como termos que não será lícito infringir sem cair no erro.


Apraz ainda citar as palavras de Pio XII dirigidas a intelectuais católicos em 1950 :

«Hoje os teólogos católicos devem poder contar com os nossos filhos cientistas ou técnicos, filósofos ou juristas, historiadores, sociólogos ou médicos, para que estes forneçam aos trabalhos dos teólogos a base de sólidos conhecimentos profanos. No seio da Igreja e em vossa qualidade de intelectuais, tal é a vossa missão privilegiada» (Mensagem a «Pax Romana» de 6 de agosto de 1950).

Esta declaração põe em clara evidência que a Igreja nada tem a temer da parte das pesquisas científicas; estas só poderão contribuir para enriquecer, ao menos indiretamente, o patrimônio da teologia. Na verdade, não há descoberta das ciências naturais capaz de destruir os conceitos de «ser» e «não-ser» e os demais conceitos da Metafísica pelos quais se exprime a Revelação cristã. Em outros termos : a Metafísica não se abala quando a Física se abala; a Metafísica pertence a outro plano que não o da Física; ora foi em termos de Metafísica (para dizer verdades transcendentes, e não para dizer verdades de ordem física, natural) que o Senhor Jesus se dirigiu aos homens.

A história dos últimos decênios demonstra mesmo como o progresso das ciências concorre para corroborar a veracidade das Escrituras Sagradas e da Revelação cristã.

Assim a existência de Jesus já não é posta em dúvida pelos estudiosos sinceros; a sua Divindade se tornou mais evidente depois que os liberais esgotaram todas as tentativas tle explicar Jesus como figura mitológica ou como mero homem endeusado. Sim; tornou-se evidente que se requer mais íé para crer que vinte séculos de Cristianismo estejam baseados em mito, lenda, fraude, alucinação, etc., do que para crer no fato sobrenatural da Encarnação. O pedestal «mito» ou «engano» não sustentaria vinte séculos de Cristianismo; deve ter havido realmente na base deste algo de sobrenatural ou a descida de Deus à carne humana, como sempre ensinou a Tradição cristã. Tal é a conclusão para a qual vão convergindo os mais ponderados dos críticos de nossos dias (cf. em particular J. Guitton no seu livro «JESUS», ed. Itatiaia, Belo • Horizonte, do qual se trata em «P. R.» 7/1958, qu. 4).

3) Aspectos particulares do Modernismo. Já em números anteriores de «P. R.» foram estudados outros temas controvertidos pelos modernistas. Por isto limitamo-nos aqui a indicar os respectivos fascículos.-


Sobre a possibilidade de Revelação Divina e seus critérios de autenticidade, veja-se «P. R.» 11/1958, qu. 1.


A propósito da veracidade dos Evangelhos, cf. «P. R.» 7/1958, qu. 4.


A Divindade de Jesus Cristo já foi considerada em «P. R.» 8/1957, qu. 1.

Sobre a cautela necessária na exegese da S. Escritura c a autoridade da Igreja neste setor, o próprio Loisy em 1892 proferiu palavras de grande valor:

«A critica bíblica, fazendo-nos tocar com o dedo os progressos lentos e difíceis da educação religiosa que Deus, em sua misericórdia, quis dar à humanidade, deve inspirar humildade de espírito, grande indulgência para com aqueles que erram involuntariamente, profunda gratidão para com o Mestre Supremo que não nas quis deixar entregues aos nossos próprios recursos e que colocou diante de nós, para nos guiar através do deserto deste mundo, uma coluna de luz, isto é, o magistério sempre antigo e sempre novo da sua Igreja» (trecho de uma aula inaugural reproduzida em «Etudes bibliques», do mesmo autor, pág. 25. ed. 1901).

É do lamentar, não tenha o estudioso francês observado as normas que ele mesmo assim propunha. Cf. «P. R.» 5/1958, qu. 5.

Em conclusão: passou-se a crise modernista. Os problemas que ela agitou, já hoje quase não são discutidos, porque o próprio progresso das ciências os foi resolvendo... Ficou, porém, o clima modernista. O homem contemporâneo ainda respira uma atmosfera de relativismo religioso, tendendo a considerar-se «medida de todas as coisas». Inegavelmente, essa atitude solapa a grandeza dos cristãos. Quem tem consciência, deste mal, mais facilmente se desvencilha dele... O relativismo religioso é irreligião «envernizada».


Apesar de tudo, o Modernismo teve suas consequências boas. Despertou o interesse dos católicos para novo estudo das fontes da fé; mostrou a necessidade de se aproveitarem os dados da ciência moderna para se penetrar o depósito da teologia sagrada. O esvaziamento das palavras (Religião, fé, experiência de Deus...) empreendido pelos modernistas provocou entre os fiéis a sede de as encher com um conteúdo mais puro e autêntico. Assim de novo se verifica que Deus não permitiria os males se deles não soubesse tirar ainda maiores bens (Sto. Agostinho).


Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

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