Nilton Fontes
A. O Castigo de Deus
Introdução
A chave do problema está em querermos ‘explicar tudo’. Quando deparamos com questões embaraçosas, remetemo-las a ‘mentalidade da época’, ‘costumes vigentes’, ‘práticas comuns daqueles povos’... etc.Isto, na prática, resulta em ‘podas’ na Palavra de Deus, isto é, retiramos a inspiração devida de determinado episódio ou narrativa bíblica. E nós sabemos quão desastrosas são as conseqüências de tais práticas. Basta lembrar:
- A Desmitificação proposta por Bultmann(1).
- O Marcionismo(2), dentre outras.
Outro ponto polêmico é a questão do castigo.
- Deus Castiga? - Perguntam os estudiosos através dos tempos.
As Escrituras
Giezi, O servo do profeta Eliseu:2Rs 5,27: A lepra de Naamã se pegará a ti e a toda a tua descendência para sempre. E Giezi saiu da presença de Eliseu coberto de uma lepra branca como a neve.
Pr 3,12: porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e pune o filho a quem muito estima. Ecl 30,1: Aquele que ama seu filho, castiga-o com freqüência, para que se alegre com isso mais tarde, e não tenha de bater à porta dos vizinhos.
Deus não poupou seu próprio Filho(Rm 8,32):
Is 53,5: Mas ele foi castigado por nossos crimes, e esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele; fomos curados graças às suas chagas.
Jesus falou do rigor do castigo...
Mt 23,33: Serpentes! Raça de víboras! Como escapareis ao castigo do inferno? Mt 25,46: E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.
...e do castigo proporcional:
Lc 20,47: que devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Eles receberão castigo mais rigoroso.
São Paulo, reconhecendo-se pecador, aplicava o castigo a si mesmo: 1Cor 9,27: Ao contrário, castigo o meu corpo e o mantenho em servidão, de medo de vir eu mesmo a ser excluído depois de eu ter pregado aos outros.
... na autoridade do Espírito Santo, inflige ao mago Elimas humilhante castigo: At 13,11: “Eis que agora está sobre ti a mão do Senhor e ficarás cego. Não verás o sol até nova ordem! Caíram logo sobre ele a escuridão e as trevas, e, andando à roda, buscava quem lhe desse a mão”
... e diz que o Senhor nos castiga para corrigir:
1Cor 11,32: Mas, sendo julgados pelo Senhor, ele nos castiga para não sermos condenados com o mundo.
... e evitar o castigo eterno:
2Ts 1,9: Eles sofrerão como castigo a perdição eterna, longe da face do Senhor, e da sua suprema glória.
E que o castigo é sinal do seu amor:
Hb 12,6: pois o Senhor corrige a quem ama e castiga todo aquele que reconhece por seu filho (Pr 3,11s).
Reiterado pelo apóstolo João:
Ap 3,19: Eu repreendo e castigo aqueles que amo. Reanima, pois, o teu zelo e arrepende-te.
Diante das palavras de Pedro, Ananias e Safira caíram mortos:
At 5,5: “Ao ouvir estas palavras, Ananias caiu morto. Apoderou-se grande terror de todos os que o ouviram”.
A Tradição dos Padres
- São Basílio Magno (329-379), bispo e doutor da Igreja, ensina em seus escritos que há três formas de amar a Deus: a primeira é como o mercenário, que espera a retribuição; a segunda, é como escravo que obedece por medo do chicote, o castigo de Deus; e o terceiro é o amor filial, daquele que obedece porque de fato ama o Pai. É assim que devemos amar a Deus; e, a melhor forma de amá-lo é repudiando todo pecado.“A ira de Deus é inevitável. Deus não é de vingança, mas castiga pela mansa. (Numinis ira inevitabilis). [Erasmo, Adagia 5.2.32].
- Santo Agostinho(354-430): “...quando Deus corrige o gênero humano e envia o misericordioso flagelo do castigo, para que os homens se emendem antes do dia do juízo. E o faz, em geral, sem escolher os que prova, pois não quer que ninguém se perca”( Sermão s/Devastação de Roma, 2)
Também de Santo Agostinho são as seguintes palavras: "Se vives em pecado e Deus não te castiga, mal sinal é".
O Doutor Angélico:
Santo Tomás de Aquino(1225-1274) nos diz: “Também nos casos em que os justos sofrem neste mundo aparecem a justiça e a misericórdia. Pois por tais sofrimentos eles se purificam das faltas veniais (leves) e desapegando dos bens terrenos se elevam mais a Deus. Diz Gregório (Moral 26,9): ‘Os males que neste mundo nos oprimem, impulsionam-nos para Deus’” (Suma Teol. I, Q.21, art.4, obj 3).
"Acolhei a disciplina pois quando se acender sua cólera... Bem-aventurados todos os que nele confiam". "Pois, quando, em breve, se acender sua cólera, bem-aventurados todos os que nele confiam". E diz bem: "Quando se acender", pois, de momento, não queima e corrige como pai, mas, no futuro, queimará e consumirá, quando punir com a pena eterna: "É o nome do Senhor que vem de longe, sua cólera é ardente e pesada, seus lábios respiram furor e sua língua como fogo devorador" (Is 30, 27). (Comentário ao Sl 2 – Cap X)
“D'Ele, portanto, vem o mal do castigo, mas este não é um mal absoluto, porém relativo, e em termos absolutos, é um bem. Porque já que uma coisa é boa quando ordenada para um fim, enquanto o mal implica em uma falta desta ordem, aquilo que exclui a ordem até o fim último é mau, e este é o mal de um crime. Por outro lado, o mal do castigo é realmente um mal, enquanto privação de algum bem particular, mas é, absolutamente falando, um bem, enquanto ordenado para o Fim último.”(Suma Teol. II/II, Q.19, art.1)
Outros:
São Bernardo(1090-1153):
"Quem pecou, não experimentando o castigo de Deus, pode estar certo que é objeto da ira de Deus. Deus condena no outro mundo a quem nesta vida não conseguiu corrigir pela adversidade".
Pe. Antônio Vieira(1608-1697):
“Daqui se entenderá aquela sentença famosa de Davi, que mais parece enigma que sentença: Semel locutus est Deus, duo haec audivi (Sl. 61, 12): Deus — diz Davi — disse uma coisa, e eu ouvi duas. — Aquilo que se ouve, se se ouve bem, é o mesmo que se diz; pois, se Deus disse uma só coisa, Davi, que era muito bom ouvinte, como ouviu duas? O mesmo Davi se explicou, e não sei se nos implicou mais: Duo haec audivi, quia potestas Dei est, et tibi, Domine, misericordia: quia tu reddes unicuique juxta opera sua (Ibid. 12): O que ouvi — diz Davi — é que Deus todo-poderoso tem misericórdia e justiça, com que dá a cada um segundo o merecimento de suas obras”(Sermão do 4º sábado da quaresma).
Para o santo Cura d’Ars(1786-1859), os castigos de Deus são graças: “’Dizemos às vezes: Deus castiga aqueles a quem ama’. Nem sempre é verdade. As provações, para aqueles que Deus ama, não são castigos, são graças...” . "Se não houvesse almas puras que aplacassem a Deus ofendido pelos nossos pecados, quantos e quão terríveis castigos teríamos nós que suportar!"(Idem, cf. Sacerdotii, nostri promordia, 17).
Sinais do nosso tempo: A Irmã Lúcia, (1907-2005) de Fátima, escreve: “A guerra vai logo acabar, mas se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior. Quando virem uma noite iluminada por luz desconhecida, saibam que é o grande sinal que Deus lhes dá de que vai castigar o mundo pelos seus crimes, por meio da guerra, fome, perseguições à Igreja e ao Santo Padre...”(Castigo que se cumpriu com trágicas conseqüências).
O Sagrado Magistério
Paulo VI, na doutrina das indulgências, lembra-nos que as penas do pecado devem ser reparadas pelos sofrimentos desta vida ou da outra (se não indulgenciadas): “Assim nos ensina a revelação divina que os pecados acarretam como conseqüência penas infligidas pela santidade e justiça divina, penas que devem ser pagas ou neste mundo, mediante os sofrimentos, dificuldades e tristezas desta vida e sobretudo mediante a morte, ou então no século futuro...”(DI, 2)Catecismo: “Para os estimular às obras virtuosas, foram necessários o temor do castigo e diversas promessas temporais, até sob a Nova Aliança. Em todo caso, mesmo que a Lei Antiga prescrevesse a caridade, ela não dava o Espírito Santo pelo qual "o amor de Deus derramado em nossos corações" (Rm 5,5) “(Cat § 1964).
"A nossa Cabeça(Cristo), diz santo Agostinho, ora por nós; acolhe uns membros, castiga outros, a outros purifica, a outros consola, a outros cria, a outros chama, a outros torna a chamar, a outros corrige, a outros reintegra"(Mystici Corporis, 57).
“Deus é descrito amando o seu povo escolhido com um amor justo e cheio de santa solicitude, qual é o amor de um pai cheio de misericórdia e de amor, ou de um esposo ferido na sua honra. É um amor que, longe de decair e de cessar à vista de monstruosas infidelidades e pérfidas traições, castiga-os, sim, como eles merecem, mas não para os repudiar e os abandonar a si mesmos, mas só com o fim de limpar, de purificar a esposa afastada e infiel e os filhos ingratos...”(Haurietis Aquas, 15)
B. A prefiguração do Castigo Eterno
Figuras em Geral:As realidades do AT só se tornam plenamente explícitas quando confrontadas com a Revelação Plena do NT. Assim não poucos dos personagens e episódios ali narrados são figuras e prefigurações de realidades que só se conheceriam em plenitude nos tempos messiânicos:
1Pd 3,21: “Esta água prefigurava o batismo de agora, que vos salva também a vós, não pela purificação das impurezas do corpo, mas pela que consiste em pedir a Deus uma consciência boa, pela ressurreição de Jesus Cristo”
Rm 5,14: “No entanto, desde Adão até Moisés reinou a morte, mesmo sobre aqueles que não pecaram à imitação da transgressão de Adão (o qual é figura do que havia de vir)”
Hb 9,1-9: “A primeira aliança ... o Santo ... o Santo dos santos... Isto é também uma figura que se refere ao tempo presente, sinal de que os dons e sacrifícios que se ofereciam eram incapazes de justificar a consciência daquele que praticava o culto”.
O Santuário do templo como figura do céu: “Eis por que Cristo entrou, não em santuário feito por mãos de homens, que fosse apenas figura do santuário verdadeiro, mas no próprio céu”(Hb 9,24).
Também no deserto, o alimento e a bebida dos hebreus eram figuras de Cristo: “todos comeram do mesmo alimento espiritual; todos beberam da mesma bebida espiritual (pois todos bebiam da pedra espiritual que os seguia; e essa pedra era Cristo).”(1Cor 10,3-4).
Figuras de Castigo:
Não havendo outra maneira de representar a perdição e condenação eternas no AT, os hagiógrafos utilizavam a morte física para exprimi-la:
Gn 2,17: “no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente”.
Gn 20,7: “Devolve agora a mulher deste homem ... se não a devolveres, sabes que morrerás seguramente, tu e todos os teus”
2Sm 12,13: “Natã respondeu-lhe: O Senhor perdoa o teu pecado; não morrerás.” Jr 28,16: “Ainda neste ano morrerás, pois que insuflaste a revolta contra o Senhor!”
Am 7,17: “Eis o que diz o Senhor: tua mulher será violada em plena cidade, teus filhos e tuas filhas cairão sob a espada, teu campo será repartido a cordel; quanto a ti, morrerás numa terra impura”
Nm 26,10: “A terra, abrindo sua boca, engoliu-os com Coré, enquanto o seu grupo perecia pelo fogo...”
2Sm 6,6-7: “Oza estendeu a mão para a arca do Senhor ... a cólera do Senhor se inflamou contra Oza ... Oza morreu ali mesmo, perto da arca de Deus.” Nm 3,4: “Nadab e Abiú morreram diante do Senhor, quando levaram à sua presença um fogo estranho no deserto do Sinai”
C. CONCLUSÃO
1. Em Deus tudo é infinito. Não se pode exaltar um atributo em detrimento do outro, sob pena de incorrermos nas mais horrendas heresias: Ex: Deus sendo misericordioso não condena ninguém, logo o inferno não existe ou ‘se existe está vazio’. ?!?!?!?! (Heresia tão propagada nos nossos dias!!!).2. É preciso ler o Antigo Testamento dentro do adágio: “O Novo está contido no Antigo. O Antigo está explicado no Novo. O Novo está latente no Antigo. O Antigo está patente no Novo.” (tb cf. Dei Verbum, 16).
3. Jesus nunca retirou a autoridade das Escrituras(3) , relegando suas partes difíceis a ‘costumes dos povos da época’, ou coisas semelhantes, mas proclamou com toda autoridade:
“Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas...”(Mt 5,17); “Aquele que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar assim aos homens, será declarado o menor no Reino dos céus”(Mt 5,19); “passará o céu e a terra do que se perderá uma só letra da lei”(Lc 16,17).
Síntese Final
Para preservar o povo de Deus da idolatria dos pagãos e de todas as suas práticas abomináveis, não poucas vezes os israelitas foram exortados a não fazer nenhum pacto com os habitantes da terra que o Senhor lhes daria (Ex 23,24.32; 34,12.15; Lv 20,5; Dt 4,19; 12,3.30; Jz 2,2-3.17; 8,27.33; 1Sm 15,6). Por conseguinte, o Herém é ordem de Deus, entendida nestes principais motivos:a) Justiça de Deus contra os cananeus idólatras Se Deus outrora fizera justiça, riscando do mapa cidades inteiras (a pentápole: Sodoma, Gomorra...) por causa de sua perversidade, não é de se surpreender que Ele o faça através de agentes humanos, no caso o seu povo eleito.
b) Utopia
Seria inadmissível que Josué se apresentasse aos reis de Canaã com um discurso assim: “Senhores, sabeis, que Iahweh, nosso Deus, o Todo-Poderoso, nos deu esta terra que habitais, por herança. Portanto é preciso que dela saiais, deixando-nos todos os seus palácios, todas as suas construções, todos os seus rebanhos, todas as suas vinhas... porque esta é a vontade de Deus. Buscai para vós outra terra” ?!!?!?!?!?!??!
c) Mal menor
O maior mal que pode afligir o homem é o pecado, pois lhe tira o maior bem: a vida eterna.
Por isso a prática do herém tornou-se um ‘mal necessário’, ou MAL MENOR, para evitar que o povo de Deus assimilasse todas as mazelas pagãs, como de fato se verificou posteriormente, face ao não cumprimento fiel da ordem de Deus (1Rs 14,24; 15,12; 2Rs 2,3; 9,22; 23,7; 1Cr 5,25; Pr 22,25; Is 1,21; 57,8; Jr 3,2; 8,19; Ez 6,9; 23,7).
Este ensinamento foi ratificado e consolidado no NT, especialmente quando Jesus disse: “Se teu olho direito é para ti causa de queda, arranca-o e lança-o longe de ti”(Mt 5,29; cf. 18,9)
“Se o teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o”(Mc 9,45); “Melhor lhe seria que se lhe atasse em volta do pescoço uma pedra de moinho e que fosse lançado ao mar”(Lc 17,2). “o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á”(Mc 8,35).
d) Dureza de coração Finalmente é preciso dizer que o herém deve ser entendido dentro da pedagogia progressiva de formação da consciência do povo de Deus ...
O Pregador da Casa Pontifícia assim se expressa sobre o herém:
“O problema da violência nos angustia, nos escandaliza, atualmente esta inventou atemorizantes formas novas de crueldade e de obtusidade e invadiu até os terrenos onde deveria ser um remédio contra a violência: o esporte, a arte, o amor. Nós, os cristãos, reagimos horrorizados à idéia de que se possa fazer violência e matar em nome de Deus. Há quem objecione contudo: mas não está a própria Bíblia cheia de histórias de violência? Não é Deus chamado «o Deus dos exércitos»? Não se atribui a Ele a ordem de destinar ao extermínio cidades inteiras? Não é Ele que prescreve, na Lei mosaica, numerosos casos de pena de morte?
Se houvesse dirigido a Jesus, durante sua vida, a mesma objeção, com segurança lhe haveria respondido o que disse a propósito do divórcio: «Moisés, tendo em conta a dureza de vosso coração, vos permitiu repudiar a vossas mulheres, mas ao princípio não foi assim» (Mt 19,8). Também a propósito da violência, «ao princípio não foi assim». O primeiro capítulo do Gênesis nos apresenta um mundo onde não é nem sequer concebível a violência, nem dos seres humanos entre si, nem entre os homens e os animais. Nem sequer para vingar a morte de Abel é lícito matar (Cf. Gn 4, 15).” (Frei Raniero Cantalamessa – pregação de sexta-feira santa de 2004).
Em 08.03.2005
Nilton Fontes
NOTAS:
(1) Para Bultmann (1884-1976), teólogo protestante, o Novo Testamento era inaceitável ao homem moderno, que não mais acredita em milagres, demônios e intervenções sobrenaturais no curso da história. Era pois necessário eliminar tudo isto que ele chama de mitos: desmitificar.
(2) Márcion, cristão da Ásia Menor, viu um contraste entre o Deus do Antigo Testamento e o do Novo Testamento. O primeiro, um Deus criador justiceiro e punitivo, criador, também, do sofrimento, dor doença - e até pernilongos e escorpiões. - O Deus do Novo Testamento era Amor e Perdão. Dois deuses diferentes? Chamaram-no "dualista" e Irineu, mais tarde, objetava que os gnósticos eram dualistas como os marcionistas acreditavam que "há outro Deus além do criador".
(3) No tempo de Jesus, por Escrituras, entenda-se: O Antigo Testamento.
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