D. Estevão Bettencourt, osb.
Em síntese: A estima dos fiéis católicos ao sinal da Cruz está baseada nos escritos paulinos assim como na Tradição e na praxe contínua da Igreja. Nada tem em comum com ritos e símbolos do paganismo. A Cruz, instrumento de suplício outrora, foi santificada pelo Senhor Jesus, que dela fez a nova árvore da vida em réplica à árvore do paraíso perdida pelo pecado dos primeiros pais.
Tem-se espalhado um panfleto intitulado “O Sinal da Besta” e assinado pelo pastor Glauco Magalhães Filho, do Movimento Abatista. Ataca..., e ataca veementemente a prática do sinal da cruz assim como a imagem da cruz, muito freqüentes entre os fiéis católicos. O texto fortemente agressivo levou leitores de PR a sugerir uma resposta ao mesmo. É o que será apresentado nas páginas seguintes em tom sereno e objetivo.
1. Percorrendo o texto...
1.1. Para começar...
Logo no seu primeiro parágrafo escreve o autor:
“A Igreja Católica Romana tem promovido, desde muito tempo, o culto à cruz, a qual é vista pelos papistas como um amuleto e símbolo do cristianismo. É conhecida a oposição dos anabatistas à veneração da cruz, principalmente durante a Idade Média, quando diversos dos seus grupos (bogomilos, petrobrusianos, paulicianos e valdenses) foram torturados e mortos em virtude de seu protesto contra a idolatria”.
Estes dizeres sugerem reflexões.
Amuleto... A cruz seria, para os católicos, um amuleto. Ora, segundo o Dicionário de Aurélio, amuleto é um objetivo de efeitos mágicos ou um talismã. – Em resposta, deve-se dizer que nunca a Igreja atribuiu efeitos mágicos à Cruz do Senhor. O crucifixo e a cruz são objetos sobre os quais a Igreja profere sua oração, pedindo a Deus que aqueles que os usarem com fé e devoção, sejam cobertos de graças e bênçãos; tal é o conceito de sacramental; supõe sempre a fé e o amor de quem o utiliza.
Anabatistas na Idade Média? O autor julga que os anabatistas são discípulos de Lutero que levaram ao extremo as idéias do mestre, promovendo a revolta dos camponeses son Storch e Thomas Münzer entre 1522 e 1525: apregoavam o Batismo de adultos por não reconhecerem o de crianças; por isto rebatizavam adultos (aná em grego significa de novo). O movimento anabatista em nossos dias compreende todas as denominações que, a partir do século XVI, propugnam o Batismo de adultos apenas. Sobre a origem dos anabatistas e batistas ver PR 396?1995, pp. 215-225.
Os paulicianos eram uma seita dualista ou maniquéia, que admitia dois deuses: o deus bom, criador das almas, e o deus mau, criador do mundo material. Tiveram origem pouco depois da metade do século VII na Ásia Menor Oriental e na Armênia. O nome foi-lhes dado provavelmente pelos adversários, pois dedicavam especial veneração a São Paulo Apóstolo. O fundador da seita foi um certo Constantino (Silvano) de Cibossa. – Como se vê, os paulicianos não podem ser tidos como anabatistas, visto que professavam o dualismo ou o repúdio à matéria devida a um deus mau.
Os bogomilos (“amigos de Deus”) parecem derivar-se dos paulicianos. Também professavam um deus bom e outro mau. Tiveram origem no século X na Bulgária, e estenderam sua influência na direção do Ocidente; uniram-se aos paulicianos e deram origem ao movimento dualista cátaro na Itália Setentrional e na França do Sul.
Engana-se, pois, quem afirma que já na Idade Média existiam anabatistas representados por paulicianos e bogomilos. Estes sectários, aliás, recusavam o Batismo (e os sacramentos em geral) e não rebatizavam.
1.2. Ezequiel 9, 4
O Pr. Glauco, pouco adiante, diz que, para justificar o uso da cruz, os romanistas citam o seguinte versículo:
“Disse o Senhor a Ezequiel: “Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém, e marca com um sinal a testa dos homens que estão suspirando e gemendo por causa de todas as abominações que se cometem no meio dela” (Ez 9, 4).
A palavra sinal aí destacada é a letra hebraica tau, que corresponde à nossa letra T. O Catolicismo tenta ver nesse T, na testa, o sinal da cruz”.
Na verdade, o texto de Ezequiel é de pouca ou nenhuma importância para a devoção católica à Cruz. Esta tem valor para os católicos porque foi santificada pelo contato com Cristo, que dela fez o instrumento da Redenção humana ou a nova árvore da vida. Não é necessário recorrer ao Antigo Testamento para fundamentar a piedade católica em relação à Cruz de Cristo.
1.3. A cruz no ritual dos sacramentos
Continuando, afirma o autor do panfleto:
“A Bíblia diz o seguinte sobre o sinal da Besta:
“...E fez que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos, lhe fosse posto um sinal na mão direita ou na testa” (Ap 13, 16).
Não é o sinal da cruz feito pelo sacerdote romanista na testa da criança através de pingos, por ocasião do sacramento católico do “batismo”? Quando alguém se crisma, o padre não faz com o óleo o sinal da cruz na fronte da pessoa? Na extrema-unção não se repete o sinal da cruz na fronte? Não fazem os católicos romanos o sinal da cruz na testa com o dedo?”.
O Pr. Glauco identifica gratuitamente o sinal da Besta do Apocalipse com a Cruz do Senhor. A sua argumentação carece de valor, pois não é fundamentada e sim inspirada por um preconceito cego e pouco científico.
1.4. A antiga arte cristã
Lê-se ainda no panfleto:
“Sobre os primeiros cristãos, o próprio catolicismo reconhece:
“A representação da morte redentora de Cristo no Gólgota não ocorre na arte simbólica dos primeiros séculos cristãos. Os cristãos primitivos, influenciados pela proibição de imagens esculpidas do Velho Testamento, relutaram em representar até mesmo o instrumento da Paixão do Senhor” (New Catholic Encyclopedia, 1967, vol. IV, p. 486)”.
Não é difícil desfazer s equívocos sugeridos por este texto.
Comecemos pela chamada “Cruz de Ercolano”. – Ercolano é uma antiga cidade romana situada perto de Nápoles aos pés do Vesúvio (Itália), que em 79 d. C. foi soterrada pelas cinzas vulcânicas do Vesúvio. No século XVIII começaram as escavações no local para averiguar o que foi recoberto pelas larvas. Encontrou-se então em 1937, na chamada Casa do Biocentenário, uma saleta, em cuja parede havia um espaço quadrado de estuque e dentro desse espaço uma cruz latina de dois braços, fixa à parede. O achado suscitou grandes surpresas e debates. Finalmente após meticuloso estudo, o diretor das escavações, Professor A. Maiuri, julgou poder chegar à conclusão de que se tratava de uma cruz cristã, datada de poucos decênios após a morte do Senhor Jesus.
Pode-se realmente crer que já naquela remota época havia cristãos em tal região, pois São Paulo em 61 desembarcou em Puzzuoli perto de Nápoles e foi recebido por uma comunidade de cristãos; cf. At 28, 14. Mais: frente à Cruz de Ercolano há um pequeno móvel, que alguns arqueólogos identificaram com um altar. Se tal interpretação é autêntica, como parece, verifica-se que a veneração da Cruz é praticada desde o século I da nossa era.
Deve-se, porém, reconhecer que, pelo fato de ser instrumento de suplício dos malfeitores, a Cruz não se encontra nos mais antigos monumentos cristãos. Todavia no hipogeu (sepultura subterrânea) dos Aurélios em Roma, datado de fins do século II ou começo do século III, acha-se um afresco que apresenta um personagem apontado respeitosamente para o sinal da Cruz.
Durante os três primeiros séculos, que foram de perseguição aos cristãos, encontram-se na arte cristã alguns símbolos que lembram veladamente a Cruz. Assim, por exemplo, a âncora, que representava, ao mesmo tempo, a Crus e a esperança decorrente da Cruz (Hb 6, 19). A âncora se encontra nos recintos mais antigos das catacumbas romanas ou cemitérios cristãos; está gravada em lápides de sepulcros ou pintada sobre monumentos que podem ser atribuídos ao século I.
O tridente, que tem semelhança com a Cruz, é um pouco menos antigo; foi símbolo dos cristãos assaz freqüente nos três primeiros séculos.
A conversão de Constantino ao Evangelho em seu leito de morte e a profissão de fé cristã dos Imperadores subseqüentes fizeram desaparecer o suplício da Cruz. Esta se tornou então unicamente sinal da Paixão vitoriosa do Senhor. Conscientes do seu valor, os cristãos ornamentaram a Cruz com plantas e pedras preciosas.
Quanto ao uso do sinal da cruz ou da persignação, é atestado também desde os primeiros séculos:
Assim, por exemplo, o escritor Tertuliano (+ pouco antes de 220) atesta:
“Quando nos pomos a caminhar, quando saímos e entramos, quando nos vestimos, quando nos lavamos, quando iniciamos as refeições, quando nos vamos deitar, quando nos sentamos, nessa ocasiões e em todas as nossas demais atividades, persignamo-nos a testa com o sinal da Cruz” (De corona militis 3).
Diz ainda Hipólito de Roma (+ 235/6), descrevendo as práticas dos cristãos do século III:
“Marcai com respeito as vossas cabeças com o sinal da Cruz. Este sinal da Paixão opõe-se ao diabo e protege contra o diabo, se é feito com fé, não por ostentação, mas em virtude da convicção de que é um escudo protetor. É um sinal como outrora foi o Cordeiro verdadeiro; ao fazer o sinal da Cruz na fonte e sobre os olhos, rechaçamos aquele que nos espreita para nos condenar” (Tradição dos Apóstolos 42).
As Atas dos Mártires, por sua vez, dão a saber que os mártires se persignavam com o sinal da Crus antes de enfrentar a luta final.
Aliás, a estima dos cristãos pela Cruz de Cristo, feita nova árvore da vida e instrumento da Redenção humana, tem seu fundamento nos próprios escritos do Novo Testamento, como se depreenderá de quanto segue.
2. A Fundamentação Bíblica
Escreve São Paulo:
“Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6, 14).
Como se vê, o Apóstolo fala de gloriar-se na Cruz de Cristo, que é motivo de sua ufania.
Na sua pregação o Apóstolo se referia à Cruz do Senhor como ponto central da mensagem, não por ser a Cruz instrumento de morte, mas por ter sido a réplica da árvore da vida perdida pelo pecado no paraíso. A Cruz gloriosa é o símbolo da Páscoa ou da vitória da Vida sobre a morte:
“Cristo me enviou... para anunciar o Evangelho sem recorrer à sabedoria da linguagem, a fim de que não se esvazie a Cruz de Cristo. Com efeito, a linguagem de Cruz é loucura para aqueles que se perdem, mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1, 17s).
“Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em buscam de sabedoria. Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1Cor 1, 22-25).
“Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado?” (Gl 3, 1).
Estes textos evidenciam como a pregação do Apóstolo enfatiza o valor da Cruz de Cristo como mensageira de salvação.
De resto, ao cristão toca não somente o dever de venerar a Cruz do Senhor, mas também o de configurar sua vida à do Crucificado, carregando diariamente a cruz com Jesus:
Mt 10, 38: “Aquele que não toma a sua cruz e me segue, não é digno de mim”. Cf. Mc 8, 34; Lc 9, 23; 14, 27.
Mt 16, 24: “Disse Jesus aos seus discípulos: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
Gl 2, 19: “Pela Lei morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Fui crucificado com Cristo”.
Gl 5, 24: “Os que são de Cristo Jesus, crucificaram a carne com suas paixões e suas concupiscências”.
Gl 6, 14: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo”.
O sinal da Cruz é o sinal dos cristão ou o sinal do Deus vivo; cf. Ap 7, 3.
Em conclusão, pode-se dizer: estes elementos de literatura bíblica, história e arte antiga atestam sobejamente que a Cruz, como símbolo cristão, é algo de genuinamente neotestamentário. Seu valor de sinal sagrado, típico do discípulo de Cristo, já é incutido pelos Evangelistas e por São Paulo. A vivência e a iconografia dos cristãos, desde o século I, deram a este símbolo sagrado um lugar de escol entre as expressões da fé cristã. Donde se vê que é totalmente descabida a teoria de que a Cruz é um símbolo pagão introduzido por influência do paganismo na Igreja e destinado a ser eliminado do uso dos cristãos. Rechaçar a Cruz de Cristo é rechaçar o símbolo da Redenção e da esperança dos cristãos.
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb.
Nº 447 – Ano 1999 – Pág. 338.
Comentários
Postar um comentário